Este artigo de Lance S. Owens foi publicado originalmente em:
The Gnostic: A Journal of Gnosticism, Western Esotericism and Spirituality
Issue 3, July 2010, pp. 23-46.
Em tradução livre por Lampeju
(Laboratório de Ampliação da Personalidade e Estudos Junguianos)
Tradutor: Gabriel Fernandes de Castro Silva
Revisor: Luís Paulo Lopes
A Hermenêutica da Visão: C. G. Jung e o Liber Novus
Lance S. Owens
Na noite de 12 de Novembro de 1913, Carl Gustav Jung chegava à mítica encruzilhada de sua vida. Um poder emergindo das profundezas o compeliu a uma jornada que ele não compreendia. Vozes inesperadas pediam a palavra. Então ele foi à gaveta de sua escrivaninha, pegou o diário que abandonara onze anos antes, e abriu-o numa folha em branco.
Jung tinha então 38 anos, era um famoso médico, investigador clínico e líder do revolucionário movimento psicanalítico de Freud. Encontrava-se no escritório da mansão que havia construído para sua família às margens do Lago Zurique. Mas, nesta noite enfrentou a escuridão de um fato interior mais iminente: ao longo de uma década de sucesso meteórico, havia perdido algo muito precioso. Jung havia perdido sua alma.
Agora Ela aguardava. E Jung, debruçando-se sobre a página ainda em branco, datou o topo e começou:
“Minha alma, minha alma, onde estás? Tu me escutas? Eu falo e clamo a ti — estás aqui? Eu voltei, estou novamente aqui — sacudi de meus pés o pó de todas as terras e vim a ti, estou contigo; após muitos anos de longa peregrinação voltei novamente a ti…
Tu ainda me conheces? Quanto tempo durou a separação! Tudo ficou tão diferente! E como te encontrei? Maravilhosa foi minha viagem. Com que palavras devo descrever-te? Por que trilhas emaranhadas uma boa estrela me conduziu a ti? Dá-me tua mão, minha quase esquecida alma. Que calor de alegria rever-te, minha alma muito tempo renegada! A vida reconduziu-me a ti… Minha alma, contigo deve continuar minha viagem. Contigo quero caminhar e subir para minha solidão”.
I.
A odisseia que começaria naquela noite e prosseguiria intensamente pelos próximos cinco anos transformaria Jung. Na velhice, ele afirmou:
Os anos durante os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante da minha vida. Nele todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início, e os detalhes posteriores foram apenas complementos e elucidações. Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que jorrou do inconsciente naqueles anos e que havia me inundado como um rio enigmático, ameaçando me quebrar. Essa foi a matéria-prima para a obra de uma vida inteira. Tudo que veio depois foi meramente classificação, elaboração científica e a integração na vida. Mas o início numinoso, que continha tudo, foi neste momento.
Mas o que exatamente sucedeu — o que ele experienciou, viu, ouviu e registrou — permaneceu um mistério escondido por Jung.
Historiadores, biógrafos e críticos esforçaram-se para explicar este período seminal de sua vida. Chamaram o que aconteceu de doença criativa, um período de introspecção, um surto psicótico ou simplesmente loucura. Carecendo de qualquer fundamentação factual, tais observações eram somente especulações. Os registros do próprio Jung permaneciam ocultos.
E Jung manteve um registro extenso e detalhado. Primeiro, seis diários datados sequencialmente, conhecidos como os “livros negros”, iniciados nesta noite de novembro de 1913 e que desenrolaram-se até o início da década de 1920. Estes diários são melhor descritos como o registro primário e contemporâneo de uma viagem exploratória pela realidade imaginativa e visionária, que Jung chamou de “minha experiência mais difícil”. Em 1915, à medida que a magnitude de sua experiência o penetrava, Jung sentiu a necessidade de uma transcrição mais formal e elaborada dessas visões. Com grande habilidade artística — empregando caligrafia antiga e impressionantes obras de arte —, Jung trabalhou por dezesseis anos elaborando o primeiro registro de suas experiências descritas nos livros negros em um elegante volume encadernado em couro: o famoso, mas há muito tempo escondido, Livro Vermelho. Jung o intitulou Liber Novus, “O Novo Livro”.
Durante toda a sua vida, o Livro Vermelho, Liber Novus, permaneceu velado. Apenas um punhado de seus alunos e colegas mais próximos foram autorizados a examiná-lo. Após sua morte em 1961, sua família recusou todos os pedidos (e eles eram frequentes) para acessar este volume, ou aos secretos Livros Negros. Nas últimas décadas o Livro Vermelho ficou guardado no cofre de um banco suíço, sem ser visto por ninguém.
Agora, quase um século após o início dos diários, tanto o livro quanto a experiência que o produziu foram abertos. Com a total cooperação dos herdeiros de Jung e após treze anos de trabalho editorial exaustivamente detalhado do Dr. Sonu Shamdasani, em outubro de 2009, W. W. Norton publicou o Livro Vermelho numa edição fac-símile em tamanho real, completo, com uma tradução em inglês, uma introdução compreensível, e mais de 1500 extensas notas editoriais, incluindo trechos dos livros negros e outros documentos nunca antes conhecidos. Em suma, esta publicação sinaliza um divisor de águas na compreensão da vida e da obra de C. G. Jung. É uma revelação. À sua luz, se inicia uma nova compreensão sobre a história de Jung.
O Caminho Daquele Que Virá
O Liber Novus é a chave há muito escondida para compreender tudo o que Jung falou e escreveu após 1916. Mas, é também um documento moderno singular, um livro diferente de qualquer outro, que desafia categorizações ou comparações. Ele quebra as expectativas; fala por meio de vozes com um conhecimento além do comum.
Se alguém aborda o Liber Novus como historiador, psicólogo, crítico literário ou simplesmente como um leitor interessado, o quebra-cabeça persiste: O que ele estava fazendo? O que estava lhe acontecendo? Estes registros devem ser lidos como uma criação literária, um trabalho psicológico velado sob uma linguagem profética, uma revelação que marca uma época, ou como pura loucura? Como interpretar Jung?
Jung percebeu bem o problema. Em comentários privados registrados por um associado próximo durante a década de 1920, ele expressou suas dúvidas sobre se o trabalho, em algum momento, poderia ser revelado ou compreendido. A linguagem moderna carecia de palavras com significados vitais o suficiente para expressar a natureza daquilo que ele havia experienciado. Ele mesmo lutou para compreender o que havia vivido e para encontrar palavras que abarcassem ou explicassem esta experiência. Depois de mais de uma década cercado pelo fardo de sua revelação, e durante muitos anos traduzindo-a para o Liber Novus, Jung concluiu que seu conteúdo não poderia ser divulgado. Ninguém compreenderia.
Antes, outra obra crucial deveria acontecer. Ele precisava novamente estabelecer um método para sua loucura: uma hermenêutica para sua visão. Depois de 1928, Jung deixou de lado o trabalho com o Liber Novus e voltou-se a esta tarefa, que ocuparia as décadas restantes de sua vida. Ao longo dessa extensa empreitada, a experiência seminal a qual ele serviu fielmente permaneceria apenas insinuada ou sugerida, porém oculta.
Agora temos o registro dessa experiência. Uma jornada de descoberta transformadora que durou em intensidade por cerca de cinco anos. Nós temos o corpus do empreendimento público de Jung e a hermenêutica de sua visão, extraída deste cadinho ao longo dos quarenta anos seguintes. Finalmente, com tudo isso unido, vemos como eles se enlaçam em Jung.
Porém, como grande parte da obra de Jung, este também tem um curso circular. O Liber Novus e o esforço hermenêutico por ele fomentado formam um complexio paradoxal. Tanto a experiência quanto o conhecimento adquirido pela experiência, são um. A visão revela uma hermenêutica. A hermenêutica exige confronto com a visão.
Uma vez adentrado no reino do Liber Novus, fica impossível ler as obras completas de Jung sem ouvir o eco de sua voz. Com o Liber Novus, a maior soma dos escritos subsequentes de Jung se revela como um vasto projeto hermenêutico, que pretende abrir à compreensão moderna sua experiência, sua elaboração e seu fato central: a realidade esquecida da Alma.
Minha alma, contigo devo continuar minha viagem…
Mas o que ele estava fazendo? O que estava acontecendo com ele?
No início de 1913, a associação de Jung com Freud, que durou seis anos, dissolveu-se amargamente. Estes anos trouxeram tanto uma atividade frenética quanto o que Jung mais tarde identificou como uma crescente alienação de si mesmo. Foi uma passagem curta na longa vida de Jung, e é melhor compreendida pelo contexto negativo de seu fracasso.
Quando os dois se conheceram em 1907, Jung tinha trinta e dois anos e acabava de encontrar uma base profissional. O velho Freud oferecia exatamente o que o jovem médico então buscava: uma teoria compreensível, aparentemente construída sobre anos de insights e práticas clínicas, que ordenaram o quebra-cabeça de observações do próprio Jung, bem como suas intuições ainda incipientes acerca da psique.
De início, Jung abraçou Freud com um zelo quase religioso. Freud respondeu a este “complexo paterno” proclamando Jung, precipitadamente, como o Josué de seu Moisés; seu sucessor e príncipe herdeiro do movimento psicanalítico. Claro, junto com seu imenso intelecto e entusiasmo, Jung trouxe a Freud algo bastante necessário: um expoente de estatura internacional de fora do círculo judaico marginalizado que o cercava em Viena. A associação com Jung e seus respeitados colegas suíços situava Freud em um palco muito maior.
Jung, contudo, não era um filho obediente. Sua própria formação intelectual, poder de observação e predileções naturais atraíram-no inexoravelmente a pontos de vista não tolerados pelo dogma de Freud. Freud delimitara firmemente a psique inconsciente como uma lixeira dos traumas da vida infantil e das repressões sexuais; um porão de patologias pessoais. Jung divergiu. Ele percebeu na alma não apenas o rejeito da repressão, mas, sob esta camada pessoal, haviam estratos de cura mais profundos, provindos de fontes ainda desconhecidas.
Nas visões de seus pacientes psicóticos e nos sonhos e fantasias dos indivíduos mais equilibrados, Jung percebeu motivos míticos primitivos e imagens simbólicas — evidências amplificadas pela sua própria auto-observação. O que eles diziam, e o quão profundamente estavam enraizados, ele não sabia. Mas esta questão se tornou seu foco central. Quando Jung publicou seu gigantesco — embora um tanto caótico — estudo mitológico e simbólico da psique, Transformações e Símbolos da Libido em 1912, Freud viu a evidência cabal de heresia. Jung, por sua vez, viu em Freud uma fixação quase religiosa em um credo teórico. Ao hipostasiar seu próprio dogma sexual, Freud havia encurtado a psique.
O rompimento de seu relacionamento com Freud não foi a “causa do iminente colapso mental de Jung”, como críticos do passado sugeriram com irrefletida facilidade. Com os novos fatos em mãos, o fim desta associação se figura mais como um subproduto da busca própria (e incansável) de Jung. Em relação a isso, Freud permaneceu periférico.
A psique — a alma — fora uma força experienciada; mas Jung não podia dizer mais nada. No rascunho do manuscrito do Liber Novus, explicou: “Tive de aceitar que aquilo que anteriormente chamava de minha alma não era minha alma, senão um sistema doutrinário morto”.
Nos primeiros meses de 1913, seus sonhos traziam enigmas que ele ainda não podia solucionar. Forças incipientes se agitavam no inconsciente, em uma voz que não era a dele. Esta ativação atingiu seu clímax em outubro de 1913 com a repetição de duas visões espontâneas:
Aconteceu em outubro de 1913, quando estava sozinho numa viagem, que fui de repente surpreendido em pleno dia por uma visão: vi um dilúvio gigantesco que encobriu todos os países nórdicos e baixos entre o Mar do Norte e os Alpes. Estendia-se da Inglaterra até a Rússia, das costas do Mar do Norte até os Alpes. Quando chegou à Suíça, vi as montanhas crescendo mais e mais alto para proteger nosso país. Percebi que uma terrível catástrofe estava por vir. Eu vi as poderosas ondas amarelas, os destroços flutuando e a morte de incontáveis milhares. Então todo o mar se transformou em sangue. Esta visão durou cerca de uma hora. Isto me deixou esgotado e perturbado. E pensei que meu espírito havia ficado doente.
Duas semanas se passaram, então a visão voltou, sob as mesmas condições, ainda mais vividamente que antes, com o sangue mais enfatizado. Uma voz interior falou “observe bem; isso é totalmente real e assim acontecerá. Não se desespere por isso”
A irrupção dessas visões avassaladoras fez com que Jung temesse estar “à beira de uma psicose”. Ele já havia testemunhado as desastrosas sequelas de tais fenômenos em muitos pacientes. Comentando em um seminário privado doze anos depois, ele explicou, “Pensei comigo: ‘Se isso significa alguma coisa, significa que que estou irremediavelmente perdido”.
Nas semanas seguintes, investigou sua situação atrás de qualquer insight ou outro sinal que pudesse estancar a aparente insanidade, mas não encontrou nada. Não havia caminho de volta ou como contornar. A partir desta encruzilhada, um caminho solitário o aguardava. E ele entrou.
E assim, na noite de 12 de novembro de 1913, Jung sentou em sua mesa, abriu seu diário e abordou o mistério: “Meine Seele, meine Seele, wo bist Du? (Minha alma, minha alma, onde estás?) …”. Um ano depois, numa reflexão sobre estas palavras iniciais, comentou:
Foi isto que o espírito da profundeza me obrigou a falar e ao mesmo tempo viver contra mim mesmo, pois não o esperava. Naquele tempo estava ainda totalmente preso ao espírito dessa época e pensava de outro modo sobre a alma humana. Eu pensava e falava muita coisa da alma, sabia muitas palavras eruditas sobre ela, eu a analisei e fiz dela um objeto da ciência. Não tomei em consideração que minha alma não pode ser objeto de meu juízo e saber; antes, meu juízo e saber são objetos de minha alma. Por isso obrigou-me o espírito da profundeza a falar para minha alma, a invocá-la como um ser vivo e subsistente em si mesmo. Eu tinha de entender que havia perdido a minha alma.
Disso aprendemos o que o espírito da profundeza pensa da alma: ele a vê como um ser vivo e subsistente em si mesmo, e assim contradiz o espírito dessa época, para o qual a alma é um objeto dependente da pessoa, que se deixa julgar e ordenar e cuja extensão nós podemos compreender. Tive de reconhecer que aquilo que anteriormente eu designei como minha alma não foi na verdade a minha alma, mas um sistema doutrinário morto. Por isso tive de falar à minha alma como algo distante e desconhecido, que não tem existência através de mim, mas através do qual eu existo.
Quem és tu? És Deus?
A peregrinação havia começado, mas o curso adiante era obscuro. Jung não tinha nenhuma teoria ou conceito para explicar o que estava fazendo, a quem se dirigia, ou como deveria proceder. Deveria tão somente deixar as coisas acontecerem, permitindo que o inconsciente encontrasse sua voz. De que outra forma poderia ouvir sua intenção, ver seu ponto de vista, sondar suas profundezas? Duas noites depois, em 14 de novembro de 1913, falou novamente à sua alma:
Estou cansado, minha alma, já dura demais o meu caminhar, minha busca por mim fora de mim. Passei através das coisas e fui encontrar-te atrás da miscelânea. Mas em minha viagem equivocada através das coisas descobri a humanidade e o mundo. Encontrei pessoas. E reencontrei a ti, minha alma, primeiramente em imagem na pessoa e, depois, a ti mesma. Encontrei-te lá onde menos esperava. De lá subiste para mim de um poço escuro… Andei muitos anos, tanto que esqueci que possuía uma alma. Onde estavas tu neste tempo todo? Que além te abrigava e te dava guarda? Como devo decifrar-te?… Quem és tu, criança? Como criança, como menina, meus sonhos te representaram; nada sei de teu mistério. Perdoa, se falo como em sonho, como um bêbado — tu és Deus? Deus é uma criança, uma moça?… Como soa estranho para mim chamar-te criança. Tu, que seguras em tua mão coisas infinitas.
E na noite seguinte:
Que coisas estranhas me dizem respeito?… Para onde levas? Perdoa meu medo repleto de saber. Meus pés vacilam em seguir-te. Para que névoa e escuridão conduz tua vereda?… Coxeio atrás de ti, apoiado em muletas da razão. Eu sou homem e tu andas como um Deus… Devo entregar-me totalmente em tuas mãos — mas quem és tu?
Então sucedeu uma solene quietude. “Eu queria jogar tudo fora e voltar para a luz do dia. Mas o espírito me segurou e me obrigou a voltar para dentro de mim”.
Jung se dirigiu à sua Alma e sentiu sua realidade penetrante. Tinha ouvido um chamado da Profundeza. Mas a tentativa de um diálogo era, até então, unilateral. Por vinte e cinco noites ele persistiu, buscando comunicação. Sentia-se num deserto: um anacoreta vagando em seu próprio deserto interno sob um sol ardente. Mas precisou esperar, permanecer presente naquele fato, desligar o pensamento crítico consciente: observar o vazio, escutar o silêncio. Esperar.
Lentamente, uma resposta começou a aparecer, encontrando voz através dele. Palavras começaram a surgir, inicialmente como frases curtas e comentários enigmáticos. Ele explicou, “Às vezes era como se estivesse ouvindo-as pelos ouvidos, às vezes sentindo-as em minha boca, como se minha língua formulasse aquelas palavras; de vez em quando eu me ouvia sussurrando em voz alta”. Jung chegara ao limiar da visão.
II.
Em 1925, cerca de onze anos após estes eventos, Jung deu um seminário para um pequeno grupo que trabalhava com ele em Zurique. O grupo buscava saber mais acerca da formação de suas visões, e especificamente dos detalhes do que ocorreu durante seu decisivo confronto com o inconsciente. Jung concordou, dando seu relato público mais explícito — ainda que bem abreviado — das experiências registradas no Liber Novus. Selecionando os marcos críticos de sua passagem, discutiu longamente dois eventos iniciais. Estes podem ser descritos como o “limiar” e a “entrada” para sua jornada, ambos ocorridos em dezembro de 1913. A estes, no final de sua vida, Jung acrescentou às publicações dois novos marcos, descritos em Memórias, Sonhos e Reflexões.
Esses quatro pontos, há muito estabelecidos na literatura de Jung, nos auxiliam na orientação de um breve levantamento da jornada que é narrada no Liber Novus. Também permite-nos comparar as versões publicadas da história de Jung com seu registro primário. Eu daria um título descritivo a estes quatro marcos, ou passagens (sendo este um aparato inteiramente meu): “A Caverna”; “A Porta de Elias”; “Encontro com Filemon”; e “Os Sermões Sumários”. Abordarei cada um nos comentários a seguir.
Durante suas “vinte e cinco noites no deserto”, entre novembro e dezembro de 1913, Jung empenhava-se a ir mais fundo no que ele agora concebia como “a profundeza.” A fim de auxiliar no progresso, começou com visualizações intencionais:
Sem saber o que viria depois, pensei que talvez mais introspecção fosse necessária. Quando fazemos uma introspecção, olhamos para dentro e vemos se há algo a ser observado e, se não houver nada, podemos desistir do processo introspectivo ou encontrar uma maneira de “furar” o material que escapa à primeira pesquisa. Bolei um método muito chato, fantasiando que eu estava cavando um buraco, e aceitando essa fantasia como perfeitamente real. Naturalmente, é um pouco difícil de se fazer — acreditar tão profundamente em uma fantasia até ser levado para mais fantasia, como se você estivesse cavando um buraco real e passando de uma descoberta para a outra. Mas quando comecei com esse buraco, trabalhei e trabalhei tão firme que soube que algo se resultaria disso — esta fantasia tinha que produzir e atrair outras fantasias.
Imaginativamente, ele trabalhava: cavando, cavando. Prestando atenção, ouvindo. Cavando.
Finalmente, senti que havia chegado a um lugar onde não poderia descer mais. Disse a mim mesmo que, sendo assim, eu iria na horizontal, e então parecia que eu estava em um corredor, como se eu estivesse perambulando no lodo preto. Entrei, pensando comigo mesmo que isso era o que restava de uma antiga mina…
A Entrada da Caverna
Um relato completo do que sucedeu foi escrito em seu diário, datado de 12 de dezembro de 1913, e então no Liber Novus: “O espírito da profundeza abriu os meus olhos e tive um vislumbre das coisas interiores, do multiforme e impermanente; o mundo da minha alma…”
Vejo paredes de pedras sombrias, ao longo das quais desço a uma grande profundidade. Estou enterrado até os tornozelos numa sujeira preta diante de uma gruta escura. Sombras pairam em torno de mim. Assalta-me o medo, mas sei que devo entrar. Eu rastejo através de fendas rochosas e chego a uma gruta interior, cujo chão está coberto de água preta. Mas lá adiante enxergo uma pedra com brilho vermelho, que devo alcançar. Eu passo pela água lamacenta. A caverna está cheia de um barulho horrendo de vozes aos gritos. Eu pego a pedra; ela cobre uma abertura na rocha. Seguro a pedra na mão, olhando interrogativamente ao meu redor. Não quero prestar atenção nas vozes, elas me repugnam. Mas eu quero saber. Aqui alguma coisa deve tomar a palavra. Coloco meu ouvido na abertura. Ouço o ruído forte de torrentes subterrâneas. Vejo a cabeça sangrenta de uma pessoa na torrente escura. Está boiando ali um ferido, um assassinado. Contemplo longamente esta imagem com horror. Vejo um escaravelho grande e negro andando na torrente escura.
No mais profundo da torrente brilha um sol avermelhado, iluminando a água escura. Vi então — e o terror tomou conta de mim — um emaranhado de cobras descendo pelas paredes escuras das pedras para a profundeza onde o sol brilhava com maior intensidade. Milhares de cobras rodearam e encobriram o sol. Fez-se noite completa. Um raio vermelho de sangue, sangue vermelho-escuro veio à tona, jorrou longamente e depois secou. Estava paralisado de pavor. O que eu via?”
Em 1925, Jung narrou esta primeira visão num seminário:
Quando saí da fantasia, dei-me conta de que meu mecanismo havia funcionado às mil maravilhas, mas eu estava muito confuso quanto ao sentido de todas essas coisas que eu vira…
Jung não dispunha de nenhuma estrutura teórica ou conceitual para o que encontraria em sua exploração. Estava entrando numa dimensão desconhecida (ou esquecida) da realidade; um lugar tão perto quanto o coração batendo em seu peito, e ainda assim tão longe quanto a mais tênue das estrelas. Tudo o que sabia em termos de teoria seria descartado diante da realidade desta experiência.
O Dr. Shamdasani explica, “Seu procedimento foi claramente intencional — porquanto seu objetivo era permitir que os conteúdos psíquicos aparecessem espontaneamente.” Então Jung: “O espírito da profundeza abriu os meus olhos e tive um vislumbre das coisas interiores; o mundo da minha alma”.
Ele cruzou o limiar, e uma visão interior se abriu à sua vista. Um ano depois, ele adicionou comentários ao seu relato inicial:
Pelo fato de estar preso ao espírito dessa época, teve de me acontecer o que me aconteceu nesta noite, isto é, que o espírito da profundeza irrompeu com poder e removeu qual onda violenta o espírito dessa época. Mas o espírito da profundeza havia conseguido este poder pelo fato de eu, durante 25 noites no deserto, ter falado à minha alma e ter lhe declarado todo o meu amor e submissão. Mas durante os 25 dias dediquei todo meu amor e minha submissão às coisas, às pessoas e aos pensamentos dessa época. Somente à noite eu ia para o deserto.
Assim, pode-se diferenciar a ilusão doentia da divina. Quem quer que faça um, e não o outro, pode-se chamar de doente, pois está desequilibrado.
A partir deste ponto, surge uma questão inevitável: “Seria Jung um louco? Seria este episódio, marcado por alucinações visuais e auditivas, uma psicose?” A resposta, baseada em extensiva documentação história, é: “Não”.
Durante este período, e pelos próximos anos enquanto persistia em sua “tarefa noturna”, Jung continuava com suas atividades cotidianas sem qualquer prejuízo evidente. Mantinha uma atividade profissional ocupada, atendendo em média cinco pacientes por dia. Sua vida familiar era plena, embora inegavelmente complexa. Lecionava, escrevia e era ativo nas associações. Além disso, prestou serviço obrigatório como oficial do exército suíço, servindo na ativa por períodos prolongados durante cada um dos anos seguintes. No equilíbrio entre sua vida diurna e noturna, encontrou sanidade: “Quem quer que faça um, e não o outro, pode-se chamar de doente, pois está desequilibrado”.
Eis o nosso dilema: na concepção moderna, um indivíduo que afirma ter “visões” é insano, ou está usando a palavra errada. Encontrar a palavra certa — contra o espírito da época — fez-se tarefa árdua para Jung. Nas observações acima, ele emprega a palavra “fantasia” para descrever seu trabalho noturno, mas em outros lugares declara sua antipatia por esta, por transmitir um significado limitado no uso moderno. “Imaginação” e “visão” foram outros termos que considerou serem alternativas para circundar a experiência. Infelizmente todos sofrem a mesma limitação: o linguajar moderno patologiza ou trivializa tais palavras.
Jung quebra este enigma com seu próprio paradoxo. Nos anos subsequentes, vemos em seus escritos um tremendo esforço para revitalizar a infertilidade sofrida pela Palavra por meio de um fato vivo, experienciado. Este empenho foi crucial para seu projeto hermenêutico.
A Porta de Elias
Jung teve um “vislumbre das coisas internas”, e quis seguir adiante no caminho interior. Cerca de dez noites depois, tentou fazê-lo novamente. Desta vez as portas da percepção se abriram. Ele explanou no seminário de 1925,
“Usei a mesma técnica da descida, mas desta vez fui muito mais fundo. A primeira vez devo dizer que cheguei a uma profundidade de aproximadamente mil pés, mas desta vez foi uma profundidade cósmica. Foi como ir até a lua, ou como a sensação de pular no espaço vazio”.
No Liber Novus, ele volta a contar:
Na noite em que meditei sobre a natureza de Deus, veio-me à mente uma imagem: eu estava deitado numa profundeza escura. Um homem velho estava diante de mim. Tinha a aparência de um daqueles antigos profetas. A seus pés havia uma cobra preta. A certa distância vi uma casa cheia de colunas. Uma linda moça saiu da porta. Caminhava inseguramente, e percebi que era cega. O velho me acenou e eu o segui para a casa ao pé de um rochedo muito alto. Atrás de nós vem rastejando a cobra. No interior da casa reina a escuridão. Estamos num salão alto com paredes cintilantes. No plano de fundo há uma pedra de aquarela clara. Quando olhei no seu reflexo, apareceu-me a imagem de Eva, da árvore e da serpente. Depois avistei Ulisses e seus companheiros no vasto mar. De repente abriu-se à direita uma porta para um jardim iluminado pelo sol. Saímos, e o velho me falou: “Sabes onde estás?”
Eu: "Sou aqui um estranho e tudo é maravilhoso, assustador como um sonho. Quem és tu?"
E: “Eu sou Elias e esta é minha filha Salomé”
As visões que sucederam e se intensificaram por mais de três noites formam um dos encontros mais longos no Liber Novus (“visão” é a palavra empregada por Jung para descrever a experiência). São também altamente complexas e significativas, impossíveis de resumir adequadamente. Jung as chamou de “jogo dos mistérios”, O Mysterium. E a este, caracteriza como “transformação”. Nos escritos posteriores de Jung é possível encontrar referências aos personagens de Salomé e Elias, embora nunca explicitamente relacionados a esta experiência.
Algum tempo depois, Jung redigiu uma reflexão psicológica sobre as figuras encontradas: “Certamente não são alegorias intencionais; não foram conscientemente planejados para retratar a experiência de forma velada ou mesmo fantástica. Ao invés disso, apareceram como visões”.
À conclusão de sua primeira aparição, Jung exclama a Salomé e Elias: “Vós sois o símbolo dos mais extremos opostos”. Elias o corrige: “Nós somos reais, e não um símbolo”.
Elias fala que sua filha e sua Sabedoria são uma coisa só, desde o início. Salomé declara seu amor por Jung e revela que é sua irmã; sua mãe é Maria. No desfecho da visão – que ocorreu no Natal de 1913, Jung é Cristo – ele sofre a última hora no Gólgota. No Liber Novus:
Salomé diz: “Maria foi a mãe de Cristo, entendes?”
Jung: “Eu vejo que uma força terrível e incompreensível me obriga a imitar o Senhor em seu último padecimento. Mas como poderia atrever-me a chamar Maria de minha mãe?”
Salomé: “Tu és Cristo”
Estou parado em pé, com os braços abertos como um crucificado, meu corpo apertado e horrivelmente enrolado pela serpente: “Tu, Salomé, dizes que sou Cristo?”
Sinto-me como se estivesse sozinho em pé, num alto monte, com os braços rígidos e abertos. A serpente aperta meu corpo com seus anéis aterradores, e o sangue jorra de meu corpo em fontes nos lados do monte para baixo. Salomé curva-se sobre meus pés e os envolve com seus cabelos negros. Fica muito tempo assim deitada. De repente ela grita “Eu vejo luz!”. Realmente ela enxerga, seus olhos estão abertos. A serpente cai de meu corpo e jaz como morta no chão. Passo por cima dela e me ajoelho aos pés do profeta, cujo semblante brilha como chama.
Elias: “Tua obra está acabada aqui. Outras coisas virão. Procura incansavelmente e sobretudo escreve fielmente o que vês”.
Salomé olhava extasiada para a luz que se irradiava do profeta. Elias transformou-se numa poderosa chama de brilho branco, a serpente deitou-se em volta de seu pé, como paralisada. Salomé estava ajoelhada diante da luz em admirável arrebatamento. Brotaram-me lágrimas dos olhos, e eu saí apressadamente para a noite como alguém que não tem parte na glória do mistério. Meus pés não tocaram o chão desta terra, e minha sensação é a de desfazer-me no ar.
Em suas reflexões posteriores, Jung expõe que nenhum outro evento no Liber Novus teve a mesma qualidade que essas visões. Esta experiência marcou a entrada do mistério. E Jung atravessou.
III.
Ao fim do Mysterium, Elias ordenou explicitamente: “Outras coisas virão. Procura incansavelmente e sobretudo escreve fielmente o que vês”. Jung obedeceu.
Sua caminhada começara quarenta e cinco dias antes. Agora o reino imaginal estava aberto diante dele, e ele o adentrava incansavelmente praticamente toda noite, durante o inverno e o início da primavera de 1914. Resumos ou sumarizações não podem fazer jus à série caleidoscópica de aventuras, às figuras imaginais ou aos diálogos que se seguiram.
As experiências de Jung variavam tanto em intensidade quanto em modo de expressão. Muitas das que foram registradas são altamente visuais; outras, mais auditivas e conversacionais. Em várias passagens, o fluxo literário sugere um encontro imaginativo em andamento durante a escrita. Os comentários de Jung nos anos seguintes sobre a “imaginação ativa” admitiam uma ampla gama de experiências, pois envolve o ser como um todo. Mas, em última análise, toda metáfora sensorial para a experiência do imaginal falha na medida em que permanece míope, limitada pela luz do dia.
Nas passagens iniciais do Liber Novus — escritas cerca de um ano após as experiências iniciais e refletindo interpretativamente sobre elas — ele tenta explicar:
Se permaneceres dentro dos limites arbitrários e artificialmente criados, andas como entre dois grandes muros: não enxergas a incomensurabilidade do mundo. Mas se derrubas os muros que limitam tua visão… desperta em ti o antiquíssimo adormecido… No turbilhão do caos moram os eternos milagres. Teu mundo começa a ficar maravilhoso. A pessoa não faz parte só de um mundo ordenado, mas pertence também ao mundo maravilhoso de sua alma…
Se olhais para fora de vós, vedes a mata ao longe e as montanhas, e para além disso vosso olhar sobe para as estrelas. Mas quando olhais para dentro de vós, vedes novamente o que está perto, longe e infinito, pois o mundo interior é tão infinito quanto o mundo exterior. Assim como tendes parte na natureza multiforme do mundo através de vosso corpo, assim tendes parte na natureza multiforme do mundo através de vossa alma. Este mundo interior é realmente infinito e em nada mais pobre do que o exterior. O ser humano vive em dois mundos.
A chave é a imersão e o envolvimento na imaginação mitopoética: apreender a realidade independente da visão e da voz imaginal e fazer parte dela. Não digo “garantir realidade” à experiência — isto implicaria na soberania do observador que garante. O fato arrasador, sabido de Jung, é que seu ego sacrificara toda a soberania na experiência. O demiurgo fora deposto: a consciência não é a única criadora do real.
Encontro com Filemon
Em janeiro de 1914, Jung recebeu o dom da magia, mas não sabia como explicá-lo, interpretá-lo ou usá-lo. O que era essa magia? Precisava da ajuda de um mago. O evento que se segue é o terceiro marco da jornada de Jung, e constitui uma seção importante do Liber Novus.
Em um sonho (aparentemente nesta época) Jung conheceu uma figura impressionante,
Vi que era um homem velho com os chifres de um touro. Ele segurava um molho de quatro chaves, uma das quais ele agarrava como se estivesse para abrir uma porta. Ele tinha as asas de um martim-pescador com suas cores características. Como não compreendesse a imagem do sonho, pintei-a para figura-lá com maior exatidão.
Jung procurou pela figura na visão, e “após longa procura, encontrei a pequena casa, no campo, diante da qual se estendia um canteiro de tulipas em flor, e onde morava o mago ΦΙΛΗΜΩΝ [Filemon]…”.
Neste primeiro encontro, porém, Filemon parecia fraco, senescente e de pouca ajuda:
Por que ΦΙΛΗΜΩΝ é um mago? Com sua mágica, ele está arranjando a imortalidade, uma vida no além? Ele só foi mago por vocação, mas agora parece um mago aposentado, que se retirou do negócio. Extinguiram-se nele o desejo veemente e o dinamismo e, por mera impotência, goza do bem-merecido descanso, como toda pessoa idosa, que nada mais pode fazer do que plantar tulipas e regar seu pequeno jardim.
Nos anos seguintes, a máscara da senescência de Filemon conforme ele se revelava a Jung em progressivas emanações de grandeza atemporal. Em seu comentário de 1916 para o Liber Novus sobre o encontro inicial, Jung escreveria uma longa ode a Filemon e expressa outros entendimentos, reformulados pela experiência posterior:
Tu conheces, ó ΦΙΛΗΜΩΝ, a sabedoria das coisas vindouras; por isso és velho, muitíssimo velho, e assim como me sobrepujas em anos, também sobrepujas em futuro o presente, e o tempo de teu passado é incomensurável. És lendário e inatingível. Tu foste e serás, retornando periodicamente. Invisível é tua sabedoria, insciente tua verdade, inverídica em qualquer tempo, e assim mesmo verídica em toda a eternidade, mas tu regas com água viva, mediante a qual se abrem as flores de teu jardim, uma água estrelar, um orvalho da noite.
Em Memórias, Sonhos, Reflexões, Jung sugere a natureza de seu relacionamento com Filemon, “Às vezes ele me parecia bastante real, como uma personalidade viva. Fui andando pelo jardim com ele...”. Jung o nomeia seu professor e “guru”. Entretanto, em comentários privados a Cary de Angulo em 1923, Filemon é descrito como sendo inefavelmente maior. Era, em manifestações multiformes, um avatar do “Mestre”.
…era o mesmo que inspirou Buda, Mani, Cristo, Maomé — todos aqueles que, podemos dizer, tiveram trato íntimo com Deus.
Acima da pintura de Filemon na página 154 do Liber Novus — uma das poucas imagens disponibilizadas para publicação nas décadas anteriores — Jung escreveu um epíteto em grego: “Pai do Profeta, Amado Filemon”.
Porém, o aprofundamento da compreensão de Filemon veio somente nos próximos dois anos, como resultado do poder revelador de outras visões. No encontro inicial (no inverno de 1914), Filemon era simplesmente um velho mago misterioso, uma estranha figura onírica com asas de martim-pescador, segurando uma chave.
A Concepção do Liber Novus
No verão de 1914, este fluxo imaginal inicial diminuiu e então cessou. Jung aceitou o chamado de Elias, registrando tudo que vira e ouvira. Mas qual era o sentido? Como ele interpretaria?
Começando com as visões espontâneas de destruição vindo do norte da Europa em outubro de 1913, e então outras imagens ao longo dos meses de sua descida ao imaginal, Jung confrontara, repetidamente, presságios sombrios de guerra. Inicialmente, ele se preocupava que refletissem seu próprio estado interno, o perigo de ser dilacerado pela dissolução psíquica. Sem quaisquer suspeitas, pairava A Grande Guerra sobre a Europa.
Quando a guerra eclodiu de fato, em agosto de 1914, Jung reformou sua percepção sobre a sua jornada pessoal. Na verdade, tais visões foram precognitivas e proféticas, e não completamente pessoais. Sua experiência esteve entrelaçada com as forças que agem sobre o mundo exterior. Como ele explicou numa carta a Mircea Eliade muitos anos depois:
Agora eu estava certo de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Entendi que meus sonhos e minhas visões vieram até mim do subsolo do inconsciente coletivo. O que ficou para eu fazer agora era aprofundar e validar esta descoberta. E é isto o que tenho tentado fazer há quarenta anos.
Trabalhando a partir de seu registro primário, os Livros Negros, Jung começou um novo rascunho de um manuscrito. Aqui, ele se dedicou a um primeiro esforço interpretativo. As visões de seus diários foram fielmente transcritas, porém agora, cada nova sequência era acrescida de uma meditação ou comentário adicional. Ao concluir este rascunho, iniciou a fase seguinte do trabalho: um trabalho artístico de elaboração do texto em caligrafia medieval em páginas de pergaminho, com letras capitulares e iluminuras intercaladas.
Após transcrever o material do Mysterium em sete folhas de pergaminho, ele conjecturou ainda mais: encomendou um belo volume encadernado com requinte em couro vermelho fino com cerca de 600 páginas em branco. Na lombada, em letras douradas, pôs o título: Liber Novus.
E então começou a transcrição dos conteúdos do manuscrito diretamente para o Livro Vermelho. Seu esforço continuaria paulatinamente e com grande ofício artístico pelos próximos quinze anos. O livro nunca foi concluído. Do material de rascunho que ele compilou, apenas cerca de dois terços do texto foi transpassado para o volume de couro do Liber Novus.
Os Sete Sermões Sumários
No final do verão e no outono de 1915, após completar o primeiro rascunho de seu manuscrito, um novo fluxo imaginal irrompeu. Esses aprofundamentos prosseguiram no ano seguinte, até o verão de 1916, e constituem as últimas seções do Liber Novus. A partir daí, Filemon seria uma figura cada vez mais central na imaginação de Jung.
Sua primeira reaparição foi em 14 de setembro de 1915. Ele cumprimentou Jung com um enigma sobre o mistério do ouro, “Um tesouro em chamas está ajuntado, aguardando quem o tome”. E informou Jung que “Hermes é seu daimon”. Ambas as declarações só revelariam seu sentido para Jung duas décadas depois.
O tom dos encontros nessa segunda fase da experiência parece aprofundado e sutilmente alterado em relação ao material anterior. Jung passou um ano compilando e refletindo sobre seus experimentos iniciais. Ele estava diferenciando e integrando as vozes que emergiram das profundezas, e adquirindo a perspectiva de sua própria voz em relação a elas. As visões trabalhavam em direção a uma coalescência.
Um momento crítico desta destilação veio em 16 de janeiro de 1916 quando a alma de Jung enuncia uma surpreendente declaração sobre a natureza de Deus, o homem e a criação, que reflete (em teor e conteúdo) um antigo mito gnóstico — a história de Sophia (que fala aqui como a sua Alma) e de Abraxas, o Demiurgo criador que se separou de Sophia:
Tu deves adorar um único Deus. Os outros deuses são indiferentes. Abraxas deve ser temido. Por isso foi libertação quando ele se afastou de mim. Tu não precisas procurá-lo. Ele te encontrará, igualmente como Eros. Ele é o Deus do universo, extremamente poderoso e terrível. Ele é o impulso criador, é forma e formação, tanto matéria como força, portanto sobre todos os deuses claros e escuros. Ele arrebata a alma e a lança na procriação. Ele é criador e criado…
Mas tu tens dentro de ti o Deus único, o fabulosamente belo e bom, o solitário, semelhante às estrelas, o imóvel, aquele que é mais velho e mais sábio do que o pai, aquele que tem uma mão firme que te guia em todas as escuridões e em todos os temores mortais do terrível Abraxas. Ele dá alegria e paz, pois está além da morte e além do mutável…
Este Deus único é o bondoso, o amoroso, o guia, o terapeuta. A ele é devido todo teu amor e veneração. A ele deves orar, com ele és um, ele está perto de ti, mais perto que tua alma.
Duas semanas depois, Jung foi visitado por uma horda fantasmagórica, que exigia dele uma declaração. Na forma de sete sermões, ele deu aos fantasmas a revelação sumária de sua experiência, retratando tudo o que havia integrado das visões até então, incluindo os insights conferidos (acima) pela revelação de sua Alma. Este evento é o último grande marco que Jung divulgou publicamente sobre as experiências que formam o Liber Novus.
Em Memórias, Sonhos, Reflexões Jung dá-nos um relato do que aconteceu:
Por volta das cinco da tarde no domingo, a campainha da porta de entrada começou a soar insistentemente… Todos imediatamente olharam para ver quem estava lá, mas não dava para ver ninguém. Eu estava sentado próximo à campainha da porta e não a ouvi, mas a vi mover-se. Nós nos entreolhamos, estupefatos! A atmosfera era terrivelmente opressora, acredite! Percebi que algo ia acontecer. A casa parecia repleta de uma multidão, abarrotada de espíritos. Estavam por toda a parte, até mesmo debaixo da porta, mal se podia respirar. Quanto a mim, eu me debatia com a questão: “Pelo amor de Deus, o que é isto?” Houve então uma resposta uníssona e vibrante “Nós voltamos de Jerusalém, onde não encontramos o que buscávamos”. Essas palavras correspondem às primeiras linhas dos Septem Sermones ad Mortuos.
Pelas próximas nove noites, Jung compôs e apresentou seus Septem Sermones ad Mortuos.
Os Sete Sermões aos Mortos apresentam um vasto mito cosmogônico, um discurso sobre a emanação e evolução progressivas da consciência humana da primeira fonte inconsciente, uma plenitude inefável e indiferenciada, que Jung chama de Pleroma. Embora use termos comuns à antiga mitologia gnóstica, como Pleroma e Abraxas, não se trata da recapitulação de algum progenitor mitológico. Contudo, um leitor incauto, desconhecendo a verdadeira autoria, poderia localizá-la facilmente no quadro do antigo gnosticismo.
De seus diários, parece que Jung escreveu os sermões com sua própria voz. Porém, ao refletir mais tarde, ele viu que foi Filemon quem falou por meio dele. Quando transcreveu os Septem Sermones no manuscrito final para o Liber Novus, Jung fez Filemon se pronunciar:
Quando disse essas palavras, ΦΙΛΗΜΩΝ aproximou-se de mim com veste branca de sacerdote e colocou a mão sobre meu ombro. Falei então à escuridão: “Falai, vós mortos”. E logo gritaram em uníssono: “Nós voltamos de Jerusalém, onde não encontramos o que procurávamos. Pedimos entrada junto a ti. Tu ansiaste por nós. Não teu sangue, tua luz. É isto”.
Então ΦΙΛΗΜΩΝ levantou a voz, deu-lhes uma lição e disse…
Jung acrescenta algo mais ao texto dos sermões no Liber Novus. Após cada um dos sete sermões, Filemon faz comentários exegéticos em diálogo com Jung. Filemon afirma que suas declarações não são “profissões de fé”, mas testemunhos de seu conhecimento direto (gnose).
Jung assentiu, como escreveu em Memórias, Sonhos, Reflexões,
Essas conversas com os mortos formavam uma espécie de prelúdio ao que eu tinha de comunicar ao mundo sobre o inconsciente: um tipo de padrão de ordem e interpretação de seus conteúdos gerais.
Os Sermões também são a única parte do Liber Novus que Jung divulgou durante sua vida. Em 1916, ele mantinha um pequeno número de cópias impressas em particular, e atribuiu estas versões com o pseudoepígrafo: “Sete exortações aos mortos — escrito por Basílides em Alexandria, a cidade onde o Oriente encontra o Ocidente”. Basílides de Alexandria foi um cristão gnóstico primitivo, do qual pouquíssima documentação ainda resta.
Ao longo de sua vida, Jung entregava cópias ocasionais deste pequeno livro a amigos e alunos de confiança. Estas só eram disponíveis como presente do próprio Jung. Aqueles que recebiam tais cópias, mantinham-nas em estrito segredo.
Septem Sermones ad Mortuos, um testemunho sumário amalgamado da experiência de Jung nas Profundezas, traz o Liber Novus a um fim. Existe, todavia, um último detalhe sobre Filemon, revelado na última página do texto, que precisa ser mencionado.
Na visão final documentada no Liber Novus, Jung encontra Filemon e Cristo no seu jardim. Filemon dirige-se a Cristo como “meu mestre, meu amado, meu irmão!”. Cristo vê Filemon, mas reconhece-o como Simão, o Mago — uma das primeiras figuras históricas do gnosticismo antigo. Filemon explica a Cristo que ele já foi Simão, o Mago, mas agora se tornou Filemon.
Este fato requer mais atenção. Jung é a voz dos sermões na primeira capitulação de seu diário. Na versão dos Septem Sermones transpassada para o manuscrito do Livro Vermelho, Jung dá a voz a Filemon. Quando Jung transcreve os Septem Sermones ad Mortuos para a impressão como um texto independente, eles são atribuídos com o pseudoepígrafo de ainda outro professor gnóstico do segundo século, Basílides de Alexandria. Então é revelado que Filemon é Simão, o Mago! Deste modo Jung, Filemon, Simão Mago e Basílides finalmente combinam-se na voz do profeta gnóstico que prega os Septem Sermones ad Mortuos.
Neste ponto da jornada, as evidências sugerem que Jung assimilou algo muito central em sua experiência com o antigo nexo da gnose. Mas com certeza não foi o fim de seu percurso. Os encontros com a imaginação prosseguiram até o começo da década de 1920. A divulgação final desse material, contido principalmente nos Livros Negros 6 e 7, ocorrerá nos próximos anos.
IV.
Uma pedra se cristaliza
Desde o início de sua caminhada (em novembro de 1913), Jung debatia-se com a tarefa interpretativa de traduzir seus encontros imaginais — suas visões — em palavras. Os tradutores do Liber Novus comentam,
“No início do Liber Novus, Jung experimenta uma crise de linguagem. O espírito das profundezas, que imediatamente desafia o uso da linguagem feito por Jung junto com o espírito da época, informa a Jung que no terreno de sua alma a linguagem por ele adquirida não servirá mais”.
Seu jargão científico, suas teorias e discursos anteriormente cirúrgicos não seriam fidedignos aos fatos de sua experiência. Jung enfrenta este desafio na sua introdução ao Liber Novus, e faz esta petição ao leitor, para que compreenda:
“Minha linguagem é imperfeita. Não que eu queira brilhar com palavras, mas por incapacidade de encontrar aquelas palavras é que falo em imagem. Pois não posso pronunciar de outro modo as palavras da profundeza.”
Perto do fim de sua vida, Jung fala das visões como “a lava vulcânica da qual a pedra a ser trabalhada foi cristalizada”.
O primeiro passo — a tarefa hermenêutica primária — foi a cristalização da pedra. Esta pedra, o fato em que trabalharia pelo resto de sua vida, originou-se de uma experiência visionária multiforme que durou vários anos, uma descida à imaginação mitopoética. Agora precisava dar uma forma a esta experiência. Este foi um processo de intenso foco e profunda meditação interpretativa. A voz das profundezas falava através de imagens, e assim deveria Jung traduzir sua experiência. Até mesmo as palavras grafadas nas páginas deveriam falar por meio de imagens.
Jung intuiu ainda que sua experiência não foi sui generis, senão de alguma forma conectada com algo que já existira na história. Com pergaminho, caneta e caligrafia arcaica, ele precisou transpor um abismo invisível no tempo, ligando passado, presente e futuro.
O processo se desenrolou em uma progressão dinâmica. À medida em que a transcrição progredia, páginas de pergaminho eram transferidas ao volume fólio vermelho; as iluminuras trazidas para o texto ficaram mais expressivas; a grafia parecia menos arcaica. Esta soma revela esses estratos temporais. Mas toda a pedra foi cristalizada de uma mesma fonte.
C. G. Jung reconheceu que o que foi vivido não foi pessoal, mas relacionado à época. Ao comentar sobre criações imaginativas ao longo das eras, em 1930, ele postula que a grande arte imaginativa:
…extrai sua força da vida da humanidade, e perdemos completamente seu significado se tentarmos derivá-la de fatores pessoais.
Sempre que o inconsciente coletivo se torna uma experiência viva, é levado a influenciar a perspectiva consciente de uma época. Este evento é um ato criativo, de grande importância para toda uma época. Produz-se uma obra de arte que verdadeiramente pode ser considerada uma mensagem para as gerações…. Isto é produzido pelo inconsciente coletivo quando um poeta ou um vidente dá expressão ao desejo latente da época e mostra o caminho, por palavra ou ação, para a sua realização…”
Falava disfarçadamente a respeito de seu próprio livro oculto, Liber Novus: a transcrição primária da visão, a disposição de níveis e níveis de camadas, de palavra em imagem e imagem em palavra, voltando e avançando no tempo, “um ato criativo de grande importância para toda uma época… uma mensagem para as gerações”.
Trabalhando a pedra
No fim da década de 1920, C. G. Jung emergiu do cadinho de sua experiência. Segurava uma pedra, a cristalização da visão. Como ele a trabalhou ao longo das quatro décadas restantes de sua vida constitui um dos mais complexos e multidimensionais projetos hermenêuticos da história humana.
Não posso aqui dedicar-me por completo a decifrar as camadas semânticas neste texto. Jung usou mais de dois milhões de palavras para a história de sua pedra. Apresentarei apenas três aspectos da maneira pela qual seu projeto interpretativo se desenvolveu.
Médico e ferida
Uma década antes, Jung fora impelido a um difícil e perigoso autoexperimento. Como médico, já havia estudado por anos o poder das funções psíquicas que ferem gravemente, bem como o das que curam misteriosamente. Porém, não tinha ideia de onde se originavam tais poderes. Seu método terapêutico provou-se inadequado. Parecia que sua própria sanidade dependia de encontrar respostas para isso.
O que sucedeu no decurso de seu desbravamento foi inesperado, extraordinário, criativo, imaginativo e artístico. E mais. Jung tinha redescoberto a profundidade e vitalidade da imaginação mitopoética. Uma porta se abriu ao “outro polo” esquecido da natureza humana, o fato por trás de sua consciência.
Jung vivenciara o seu “homem empírico” entrando em uma dimensão maior, um reino “divino”, o reino do “Si-mesmo”. Na união do interno e externo, acima e abaixo, descobriu a imagem de Deus. Em setembro de 1915 ele declara incisivamente acerca de seu testemunho:
Através da união com o si-mesmo chegamos a Deus… Eu experienciei isso. Isso aconteceu em mim. E aconteceu de uma forma tal que eu não esperava nem desejava. A experiência de Deus nessa forma me foi inesperada e indesejada. Gostaria de dizer que fora um engano e teria com muita satisfação negado essa experiência. Mas não posso negar que ela se apossou de mim acima de todas as medidas e de imediato atuou sobre mim… Não tenho nenhuma intenção e nenhuma objeção suficientemente fortes que excedam a força dessa experiência.
Sem clamar para si o manto de profeta divino, ou um chamado para a arte, e certamente descartando a “possível loucura”, Jung continuava a ser um médico a confrontar a ferida de sua época: o homem moderno perdeu a sua alma. A pedra, agora cristalizada em suas mãos, carregava o poder curativo. Mas precisava ainda ser trabalhada para este propósito.
Primeiramente, era necessário despertar sua época para o fato da existência da psique. Este despertar exigia unicamente um encontro experiencial com a Alma. Os sonhos eram a evidência onipresente da atividade psíquica, mas haviam outras, como os caminhos da imaginação e da visão. Com o interesse avivado nesses fenômenos, Jung encorajaria a exploração interior, apresentando as direções e os portais, tornando-se um guia para muitos. Aqueles que julgava terem trilhado a si mesmos com êxito, e encontrado o terreno, se juntariam a ele como guias, analistas — compreendendo que um guia ou “terapeuta” só consegue acompanhar e ajudar os outros por terras pelas quais já passaram. E Jung auxiliaria, com mapas deste campo, sinalizando os marcos e traduzindo o que aprendera de suas próprias incursões em ferramentas de exploração.
Para falar do campo psíquico de maneira significativa, era preciso um novo vocabulário. Palavras que haviam sido cortadas de suas raízes pela cultura moderna precisavam ser revitalizadas, valorizadas e enxertadas na raiz perene da experiência. Este foi um empenho de vasta complexidade hermenêutica.
O núcleo da terminologia psicológica de Jung é figurativamente um mapa de sua própria jornada. Arquétipo, imaginação ativa, inconsciente coletivo, anima, animus, persona e individuação: todas essas palavras foram usadas de maneira descritiva por Jung entre 1916 e 1918 nesta segunda fase de desenvolvimento do projeto hermenêutico. E palavras como “imaginação”, “visão”, “Deus” e “símbolo” seriam receptáculos, vasos a serem preenchidos com o elixir da experiência.
Jung, o médico, foi convocado para tratar uma terrível ferida. E ofereceu seu unguento, habilmente composto a partir de uma pedra rara e curativa.
Visão e história
No final da década de 1920, Jung havia elaborado seu mapa da psique junto com um vocabulário descritivo. Não se tratavam de construtos teóricos, mas ferramentas para compreender a experiência humana. Qualquer entendimento de sua utilidade prática requer contato com os fenômenos do psiquismo. Como médico, ele se dedicou a guiar seus pacientes pessoalmente por este reino dos fenômenos, apontando os marcos de seu caos pessoal, e os caminhos com potencial curativo.
Como cientista, no entanto, a missão era mais ampla. Era preciso coletar suas evidências e elucidar a fenomenologia da psique em um nível mais genérico. Os fatos precisavam ser resumidos. E embora tenha trabalhado a vida inteira coletando histórias de casos específicos e casos clínicos de fenômenos psíquicos, nenhum estudo seria substituto da pedra de toque que repousava em seu escritório: o Liber Novus. A base empírica, o alicerce de sua ciência, já estava ali solidificada, mas sem poder ser revelada.
Jung sabia que seu livro não seria — não ainda — compreendido. O registro primário de sua vivência mais difícil, e o material formado no Liber Novus, precisavam continuar escondidos. E então em 1928, uma outra estrada se abriu.
Naquele ano, Richard Wilhelm enviou a Jung um texto de meditação chinesa que havia traduzido recentemente, O Segredo da Flor de Ouro, e solicitou que Jung o comentasse. Jung ficou estonteado. No tratado, ele viu uma descrição cristalina do que vinha fazendo. Não apenas a técnica visionário descrita era similar à sua, como o resultado do processo ali descrito refletia o seu próprio resultado, retratado pelas pinturas de mandala no Liber Novus. Subitamente um caminho se abriu, pelo qual os conteúdos de seu livro poderiam “se inserir na realidade”.
O Segredo da Flor de Ouro mapeia figurativamente a passagem por uma experiência misteriosa. Por ter ele próprio trilhado este caminho, Jung imediatamente reconheceu o que estava sendo descrito. Ele esteve lá. Utilizando este documento para ilustrar e ampliar suas descobertas, Jung transformava suas habilidades interpretativas em comentários. Deste ponto em diante, o Liber Novus a Pedra de Roseta oculta, o intertexto invisível para sua hermenêutica.
Jung também pesquisou a literatura esotérica atrás de outro material que se encaixasse em seu método hermenêutico. Há muito havia reconhecido no antigo gnosticismo o análogo de sua experiência, mas a literatura fragmentária disponível na época, no início do século XX, era muito limitada e corrompida para sustentar seu pleno desenvolvimento. Então Jung descobriu resquícios da literatura alquímica ocidental. Aqui, uma magnífica biblioteca de experiências aguardava por ele, trancada — mas ele possuía a chave.
Os alquimistas medievais foram irmãos na medicina, aparentemente queimados e marcados pela mesma prima materia magmática que Jung conhecera. A este histórico registro seria aplicada a hermenêutica de sua visão, a busca pela Pedra Filosofal. Utilizando esta fonte documental, ele poderia estabelecer extensas evidências para os delineamentos mais genéricos de sua ciência, extraídos de experiências acumuladas por séculos, elucidando a fenomenologia da psique.
Pelos próximos vinte e cinco anos Jung laborou, ressuscitando, decodificando, refinando, e iluminando os antigos e esquecidos livros alquímicos. Preparando, assim, o caminho para o seu novo livro (o Liber Novus).
Hermenêutica e tradição
A revelação do Liber Novus e outros documentos primários relacionados abrem novas perspectivas sobre a vida e obra de C. G. Jung. Uma das mais importantes destas salienta sua vocação multifacetada como um hermeneuta.
Já mencionei brevemente dois aspectos da abordagem de Jung para a interpretação de sua experiência — como ele trabalhou a pedra de seu lugar de médico e de cientista. Porém, existe ainda outra questão complexa e vital que precisa ser levada em conta: Jung recebeu uma revelação. Como foi interpretado este fato no contexto da religião ocidental tradicional, e qual foi sua leitura de si mesmo, o escolhido que recebeu a revelação?
Dizer que ele rejeitou o antigo papel do profeta é correto, mas insuficiente. Esta é uma questão crítica na compreensão de Jung e sua hermenêutica, e simplesmente dizer “Não, ele não queria isso” absolutamente não é uma resposta. Jung refletiu profundamente durante muitos anos sobre as respostas a estas questões; nas últimas duas décadas de sua vida, confrontou-se com as implicações soteriológicas de sua vivência dentro do contexto cristão.
Entre os surpreendentes materiais de origem, o Dr. Shamdasani fornece uma seção do diário de Jung datado de 5 de janeiro de 1922 no aparato editorial do Liber Novus. Jung entrou em uma conversa com sua alma sobre sua vocação. O diálogo registrado acrescenta uma perspectiva sobre o tamanho do fardo que Jung sentiu sobre si.
Ele não conseguia dormir, e pergunta a sua alma por quê. Ela responde que não há tempo, pois há uma obra imensa a ser feita e que ele deveria passar a “um nível superior de consciência”. Jung interroga, “Estou pronto. O que é? Diga!”
Alma: Você precisa ouvir: deixar de ser cristão é fácil. Mas, e depois? Pois muita coisa ainda está por vir. Tudo está esperando por você. E você? Você permanece em silêncio e nada tem a dizer. Mas você deve falar. Por que você recebeu a revelação? Você não deve escondê-la. Você se preocupa com a forma? É importante a forma quando se trata de revelação?
Jung: Mas você não está pensando que devo publicar o que escrevi [Liber Novus]? Isso seria uma desgraça. E quem iria compreendê-lo?
Alma: Não, escute! … sua vocação vem em primeiro lugar.
Jung: Mas qual é minha vocação?
Alma: A nova religião e sua proclamação.
Jung: Meu Deus! Como devo fazer isso?
Alma: Não seja tão pusilânime. Ninguém o sabe tão bem quanto você. Não há ninguém que saiba proclamá-la tão bem quanto você.
Jung: Mas quem sabe se você não está mentindo?
Alma: Pergunte a você mesmo se eu estou mentindo. Eu falo a verdade.
Três dias depois, sua alma continuou com a explanação:
“Você sabe tudo o que é preciso saber agora a respeito da revelação que você recebeu, mas você ainda não vive tudo o que deve ser vivido agora… O caminho é simbólico”.
Ele sabe tudo que é preciso saber sobre a revelação. Agora precisa vivê-la. O caminho é simbólico.
Parece que Jung confronta não só a “revelação” mas também o fato de ele próprio, um homem moderno, ser o “revelador”. Como poderia ele, “nesta época”, vivenciar um fato tão peculiar? Ele enfrenta não apenas a hermenêutica da visão, mas a si mesmo como hermeneuta.
Por trás da palavra “hermeneuta” reside um mito, e a história de seu significado. E Jung sabia. Hermes era o intérprete das palavras dos Deuses aos humanos, o mensageiro mercurial, retratado em seu aspecto planetário: um minúsculo luminar celestial, visível apenas em horário crepusculares entre o dia e a noite, em uma viagem veloz entre os portões do Sol e a terra dos sonhos humanos.
Antigas discussões teológicas sobre a hermenêutica se davam principalmente num eixo horizontal: os métodos tradicionais de interpretação de um objeto (normalmente um texto sagrado, a “palavra de Deus”) por meios históricos, éticos, alegóricos ou metafóricos.
Entretanto, um outro modo de interpretação — mais misterioso — era mencionado nos textos medievais. Chamava-se anagogia. Seus métodos permaneceram perpetuamente vagos durante muitos séculos. Seu nome vem do grego e significa “subida” ou “ascensão”. O método anagógico da hermenêutica cliva as outras abordagens com um eixo vertical: lê os sentidos místicos. Aqui, o hermeneuta faz uma ponte direta entre o acima e o abaixo, testemunhando o fato visionário velado por trás das palavras.
Jung tomou este caminho — o eixo vertical — a antiga estrada de Hermes. À imagem do hermeneuta, ele se colocou como um nexo entre interior e exterior, oculto e revelado, acima e abaixo, deuses e humanos. No caminho simbólico, Jung tinha deveres para com a sua época. E descreve sua situação:
Havia coisas nas imagens que diziam respeito não só a mim, mas a muitos outros também. Foi então que deixei de pertencer apenas a mim mesmo, deixei de ter o direito de fazê-lo. A partir de então, minha vida pertencia ao coletivo.
Muitas evidências sugerem que Jung se entendia como um elo de uma corrente dourada, a hermética “... Aurea Catena que existe desde os primórdios da alquimia filosófica e do gnosticismo”. Uma corrente forjada a partir de vidas humanas individuais, com cada elo atando uma época a uma realidade atemporal.
Jung estava dentro de uma tradição definida não por credo ou dogma, mas pela experiência: um batismo nos rios da imaginação mitopoética, uma entrada na fornalha ardente do fato primevo. No mito, no símbolo e no texto, viajantes que retornavam da antiga estrada aplicavam-se à arte interpretativa. Nos registros que deixaram, Jung reconheceu sinais de sua própria vivência.
Em seus escritos científicos, Jung apontava repetidamente para essas manifestações específicas da tradição ao longo da história, baseando-se nelas para amplificar seu próprio registro. Mais especificamente para aquela do cristianismo primitivo cuja tradição foi chamada de Gnose, e para a literatura do hermetismo e a “yoga” hermética da alquimia. Ambas as últimas, afirmava Jung, entrelaçavam-se em suas origens com o gnosticismo e estiveram associadas à tradição cristã ocidental por mais de um milênio.
Através da pedra de sua experiência, Jung viu os marcos históricos de uma hermenêutica também visionária. O que ele viu e tentou explicar muitas vezes permanece inteiramente obscuro para seus leitores. E ele compreendeu o problema: somente aqueles que viajaram através do mundo interior e se tornaram andarilhos reconheceriam com clareza estes mapas da antiguidade pelo que de fato eram. A fim de explicar o que viu, tinha de ajudar os outros a fazerem a própria jornada. Então eles também enxergariam. Era um percurso difícil e circular e, portanto, Jung dedicou sua vida a isso.
No final, Jung não proclamou uma nova religião. Em vez disso, valeu-se de sua visão para revelar a corrente viva da qual os mitos, rituais e símbolos do cristianismo se originaram. Disse que estávamos ao lado de um grande rio e, se há uma ponte a ser construída, deve começar do chão onde estamos. E encontramo-nos sobre uma grande riqueza, mas não a enxergamos. A pedra preciosa do passado, descartada e esquecida, seria a pedra angular desta ponte para o futuro. Mas primeiro, a humanidade deve retornar à fonte e encontrar a chama imaginativa com a qual a experiência forjou os mitos e imagens da antiguidade. Deste basalto derretido que emerge de canais imaginativos oriundos das profundezas, nosso destino se cristalizará.
Em uma entrevista que coincidiu com a publicação do Liber Novus, o Dr. Sonu Shamdasani foi convidado a falar sobre como o Livro Vermelho afetaria a imagem de Jung nos próximos anos. Como resposta, Shamdasani fez referência à importantíssima coleção de textos gnósticos redescobertos em 1945 e publicados pela primeira vez em 1977 como a Biblioteca de Nag Hammadi — textos amplamente reconhecidos como fontes primárias da antiga Gnose e tidas como perdidas. Sobre o futuro, ele respondeu:
A publicação será vista como um marco comparável ao efeito da publicação da biblioteca de Nag Hammadi no estudo do gnosticismo — finalmente, há a condição de se estudar a gênese da obra de Jung e o que lhe aconteceu durante este período, com base em fontes primárias…
Vejo o Dr. Jung sorrindo largamente sobre a misteriosa conjunção dentro desse comentário.
V.
Jung escreveu a conclusão do Liber Novus não à caneta em suas páginas restantes, mas na pedra, no seu monumento-símbolo da Torre de Bollingen, às margens do lago Zurique. Este era seu templo à Filemon, seu arrependimento do pecado de Fausto — a hybris da consciência moderna, que recusou um lugar de boas-vindas aos deuses.
In 1950, em lembrança de seu 75º ano, Jung trabalhou a última “página” do Liber Novus em uma grande pedra quadrada ao lado de sua torre. Quando começou a cavar a superfície frontal, a pedra mostrou-lhe um círculo e, como um olho, olhou para ele.
Com o cinzel, cavou profundamente o obre, e então a pupila. Nesta pupila — na passagem entre os mundos interior e exterior — ele viu e esculpiu uma pequena figura, o cabiri Telésforo. Com a vestimenta marcada com o símbolo de Hermes, segura uma lanterna em sua mão. Ao seu redor, em grego antigo, a pedra exibe a proclamação:
AION é uma criança — que brinca com rascunhos — O Reino da Criança
Este é Telésforo, que percorre as regiões escuras do cosmos
E brilha como Estrela nas profundezas
Sinalizando o caminho para os Portões do Sol e para a Terra dos Sonhos
Ali, no limiar da visão, encontramos o mistério final de Carl Gustav Jung e seu Liber Novus.