A obra de Henry Corbin é de extrema relevância à psicologia profunda junguiana. Certamente, a amizade entre Jung e Corbin revela uma afinidade fundamental entre o olhar destes dois grandes autores. Jung chegou a dizer que Corbin teria sido o único que compreendeu inteiramente sua obra. Essa afirmação se torna compreensível na medida em que nos aprofundamos no olhar de Henry Corbin. Parece que ele avançou a partir de um limiar que o próprio Jung não podia mais avançar devido aos limites epistemológicos impostos pela psicologia; assim, as obras de ambos me parecem absolutamente complementares. A sensação que tenho é de que ambos os autores, cada um a seu próprio modo, têm um mesmo compromisso: resgatar a Alma, esquecida e desprezada pelo homem moderno; e assim, as obras de ambos convergem em um sentido mais nobre, a cura da humanidade. Aqui, me refiro a Alma não como uma mera palavra tal como é usada hoje pelo senso comum. Afinal, o que se quer dizer quando se utiliza a palavra Alma no mundo moderno? Qual a importância da Alma? Em nosso mundo, lamentavelmente, a Alma virou uma vaga ideia; como se não tivesse realidade em si mesma. Fato que considero a pior tragédia da modernidade: a perda da dimensão imaginal. Não nos esqueçamos que Jung inicia seu Livro Vermelho vagando pelo deserto em busca de sua Alma perdida; e o que vem em seguida, isto é, todo o conteúdo do Livro Vermelho (ou a gnose de Jung) se caracteriza pelo encontro desta dimensão esquecida da vida que Henry Corbin chama de mundus imaginalis; em termos junguianos, trata-se do caráter criativo, ou mitopoético, do inconsciente, sem o qual não pode haver a vivência simbólica nem tão pouco o processo de individuação. Considero não ser possível uma compreensão adequada da obra de Jung sem que se conheça esse território perdido em primeira pessoa. Na minha visão, enquanto o mundus imaginalis permanecer como um território esquecido, só restará o deserto desta época, onde o racionalismo materialista impera e rebaixa a compreensão da própria obra junguiana a um nível meramente conceitual e, portanto, inferior.
A presente tradução do artigo de Henry Corbin foi realizada por William Passarini e publicada originalmente no Blog Recorte Lírico. William nos presenteou com um dos textos mais importantes do Corbin. Considerando que até hoje nenhum livro do Corbin foi traduzido ao português, essa tradução livre é uma verdadeira pérola para o público brasileiro. William pediu que eu enfatizasse se tratar de uma tradução amadora; o que deixo aqui registrado; porém, considero que o texto que ele nos apresenta é extremamente valioso. Deixo meu agradecimento ao William Passarini pela tradução e o link para o Blog Recorte Lírico no final do texto.
Luís Paulo Lopes
Lampeju - Laboratório de Ampliação da Personalidade e Estudos Junguianos
[Este artigo, apresentado no Colóquio sobre Simbolismo em Paris em junho de 1964, apareceu em Cahiers internationaux de symbolisme 6, Bruxelas (1964), pp. 3–26. A versão aqui impressa foi resumida (com a permissão do autor) omitindo parágrafos de uma natureza técnica nas páginas 5 e 8 do original, tão bem quanto o relato (pp. 17–23) da topografia do Oitavo Clima. O texto completo desse relato foi publicado em H. Corbin, En Islam iranien: aspects spirituels et philosophiques, tomo IV, livro 7, Paris: Gallimard, 1971. Outros escritos do Prof. Corbin estão sendo publicados regularmente em francês nos Eranos Jahrbiicher. Seus principais trabalhos em tradução inglesa são: Avicenna and the Visionary Recital (Bollingen Series LXVI) N. Y. e Londres, 1960; e Creative Imagination in the Sufism of Ibn’Arabi, Princeton e Londres, 1969. — Eds.]
Minha intenção ao propor as duas palavras latinas mundus imaginalis como título deste artigo foi delimitar uma ordem bem precisa de realidade, que corresponde a um modo preciso de percepção. A terminologia latina tem a vantagem de nos prover com um ponto de referência fixo e técnico à luz do qual podemos comparar e medir os equivalentes vários, mais ou menos vagos, sugeridos pelas línguas ocidentais modernas.
Para início, devo fazer uma confissão. A escolha das duas palavras começou a ser inevitável para mim alguns anos atrás, pois percebera ser impossível contentar-me com a palavra imaginário pelo que tinha de traduzir ou descrever. Não tem-se a menor intenção com isto de criticar aqueles a quem o uso da língua compele o recurso a esta palavra, já que todos estamos tentando simplesmente reavaliá-la no sentido positivo. Entretanto, apesar de todos os nossos esforços, não podemos evitar, no uso corrente e não premeditado, a equivalência do termo imaginário com o irreal, com algo que está fora da estrutura do ser e da existência, em resumo, com algo Utópico. A razão pela qual eu absolutamente tive de encontrar uma outra expressão foi que, por bons muitos anos, minha vocação e minha profissão me exigiam interpretar os textos persas e árabes, cujo significado indubitavelmente teria traído se eu simplesmente tivesse me contentado — mesmo tomando a devida precaução — com o termo imaginário. Tive de encontrar uma expressão nova para evitar o engano ao leitor ocidental, que, pelo contrário, tem de ser despertado de seu velho modo enraizado de pensar a fim de se despertar para uma outra ordem de coisas.
Em outras palavras, se no uso em francês (e em inglês) equalizamos imaginário com o irreal, o Utópico, isto é indubitavelmente sintomático de algo que contrasta com uma ordem de realidade, a qual chamo mundus imaginalis, e a qual os teósofos do islã designam como o “oitavo clima”. Após um breve esboço desta ordem de realidade, devemos estudar o órgão pelo qual a percebemos, ou seja, consciência imaginativa, Imaginação cognitiva; e por fim devemos extrair algumas conclusões das experiências daqueles que de fato estiveram lá.
1. “Nâ-Kojâ-Abâd” ou o Oitavo Clima
Acabei de mencionar a palavra utopia. Estranho o suficiente — ou talvez seja o exemplo mais pungente — na Pérsia nossos autores usam um termo que parece ser sua transferência linguística: Nâ-Kojâ-Abâd, “o país do lugar-nenhum”. Mas, este país é qualquer coisa menos uma utopia.
Olhemos para essas belíssimas narrativas, que são tanto contos visionários quanto contos de iniciação espiritual, escritos em persa por Sohrawardi, o jovem xeique que foi “o ressuscitador da antiga teosofia persa” no Irã islâmico do século doze. No início de cada narrativa, o visionário encontra-se na presença de um ser sobrenatural de grande beleza, a quem ele pergunta quem é e de onde vem. Fundamentalmente, esses contos ilustram a experiência do gnóstico, vivida como a história pessoal do Estrangeiro, o cativo que aspira retornar para casa.
No início da narrativa que Sohrawardi intitula O Arcanjo carmesim [1], o cativo, que acabou de escapar do olhar vigilante de seus carcereiros, isto é, que momentaneamente deixou o mundo da experiência sensível, encontra-se no deserto na presença de um ser que lhe aparece dotado com todas as graças da adolescência. Ele portanto o questiona: “De onde vens, Oh Juventude!” E a resposta é: “Como assim? Sou o mais velho filho do Criador [em termos gnósticos o Protokistos, o Primeiro-Criado] e tu chamas-me de juventude?” Sua origem dá indício da misteriosa cor vermelho-púrpura em que ele aparece: é a cor de um ser que é pura Luz, cujo brilho é atenuado para um roxo crepuscular pela escuridão do mundo das criaturas terrestres. “Vim de além do Monte Qâf… Que é onde tu estavas no início e será aonde tu retornarás, uma vez que estiveres livre de teus grilhões”.
Monte Qâf é a montanha cósmica, a qual, cume após cume e vale após vale, é constituída por esferas celestes, uma envolvendo a outra. Onde então está a estrada para fora disso? Qual é a distância? “Não importa para quão longe seja tua viagem”, diz-se, “sempre estarás de volta ao ponto de partida”, assim como a agulha de um compasso sempre volve-se para o ponto magnético. Isto simplesmente significa que você abandona-se a si próprio para voltar a si mesmo? Não exatamente, pois durante o percurso um evento muito importante terá mudado tudo. O eu que se encontra lá, além do Monte Qâf, é um eu mais elevado, um eu experienciado como um “Tu”. Como Zhezr (ou Khadir, o profeta misterioso, o eterno andarilho Elijah ou seu duplo), o viajante tem de se banhar na Primavera da Vida.
Aquele que descobriu o significado da Realidade Verdadeira chegou nesta primavera. Quando ele emerge da primavera, está dotado com um Dom que o assemelha ao bálsamo, do qual uma gota destilada na concavidade de uma mão contra o sol a atravessa para o dorso. Se tu fores Khezr, também poderás passar além do Monte Qâf sem dificuldade.
A expressão Nâ-Kojâ-Abâd é um termo estranho. Não está listada em nenhum dicionário persa, e, até onde eu saiba, foi forjada pelo próprio Sohrawardi, recorrendo à mais pura língua persa. Literalmente significa a cidade, a terra (abâd) de nenhum-lugar (Nâ-Kojâ). Por isso estamos confrontando-nos aqui com um termo que, à primeira vista, pode parecer-nos ser o equivalente exato do termo ou-topia, que por sua vez não está listado em nenhum dos dicionários clássicos de grego e foi criado por Thomas More como um conceito abstrato denotando a ausência de qualquer localização, de um situs qualquer no tipo de espaço que pode ser explorado e controlado por nossa experiência sensorial. Etimologicamente e literalmente pode ser correto traduzir Nâ-Kojâ-Abâd por outopia ou utopia, e ainda assim creio que seria um erro de interpretação do conceito, da intenção por trás dele, e também de seu significado em termos de experiência vivida. Portanto me parece extremamente importante no mínimo tentar averiguar por que seria uma tradução incorreta.
(C. G. Jung e Henry Corbin)
Acredito ser indispensável aqui estar claro em nossas mentes o real significado e impacto da informação múltipla sobre as topografias exploradas num estado visionário, ou seja, o estado intermediário entre acordado e dormindo, incluindo a informação que, para os espiritualistas do islã shiita, refere-se ao “país do Imam oculto”. Ao alertarmo-nos para um diferencial que refere-se a uma área inteira da alma, e consequentemente a uma cultura espiritual inteira, esta clarificação nos levaria a perguntar: sob quais circunstâncias aquilo que correntemente chamamos utopia, e portanto o tipo de homem chamado utopista, se torna possível? Como e por que ele surge? Estou de fato questionando-me se algo disso pode ser encontrado no pensamento islâmico tradicional. Não creio, por exemplo, que as descrições da “Cidade Perfeita” por Farabi no século décimo, ou, na mesma linha, a “Regra do Solitário” [2] pelo filósofo andaluz Ibn Bajja (Avempace) no século XII, eram projeções do que hoje chamamos uma utopia social ou política. Para entender essas descrições como utopias, teríamos que, receio, abstraí-las de suas próprias premissas e perspectivas, impondo-lhes nossas próprias dimensões, ao invés. Acima de tudo, entretanto, receio que teríamos que resignar a uma confusão da Cidade Espiritual com uma cidade imaginária.
A palavra Nâ-Kojâ-Abâd não denota algo que tenha a forma de um ponto, nem tenha extensão espacial. O que Sohrawardi portanto descreve como estando localizado “além do Monte Qâf” é o que as cidades místicas, como Jâbalqâ, Jâbarsâ, e Hûrqalyâ, representam para ele e através dele para a tradição teosofista inteira do islã. Fica bem claro que topograficamente esta região começa na “superfície convexa” da nona Esfera, a Esfera das Esferas, ou a Esfera que envolve o Cosmos como um todo. Significa que inicia-se no preciso momento em que alguém deixa a Suprema Esfera, que define todos os tipos de orientação possíveis em nosso mundo (ou em nosso lado do mundo), a “Esfera” à qual os pontos cardeais referem-se. Torna-se óbvio que, uma vez esta fronteira sendo atravessada, a questão “onde” (ubi, kojâ) torna-se sem sentido no mínimo em termos do significado que tem no reino da experiência sensível. Consequentemente encontramos a expressão Nâ-Kojâ-Abâd, que é um lugar fora do espaço, um “lugar” que não está contido em nenhum outro lugar, em um topos que torna possível dar uma resposta para a questão “onde” com um gesto de mão. O que precisamente queremos dizer, entretanto, quando falamos de “abandonar o onde”?
Sem dúvidas, o que está em jogo não é um movimento local [3], uma transferência corporal de um lugar a outro, como ocorreria no caso de lugares no mesmo espaço homogêneo. Como sugerido no fim do conto de Sohrawardi pelo símbolo da gota de bálsamo no côncavo da mão mantida contra o sol, é essencial ir ao interior, penetrá-lo. Mas, alcançando o interior, encontra-se paradoxalmente no fora, ou, na linguagem dos autores, “sobre a superfície convexa” da nona Esfera, em outras palavras “além do Monte Qâf”. Essencialmente a relação implicada é aquela do fora, do visível, do exotérico (em grego ta exo, em árabe zahir) com o interior, o invisível, o esotérico (em grego ta eso, em árabe batin), ou a relação do natural com o mundo espiritual. Abandonar o onde, a categoria ubi, é equivalente a abandonar as aparições exteriores ou naturais que encobrem as realidades interiores ocultas, tal como a amêndoa está oculta em sua casca. Para o Estrangeiro, o Gnóstico, este passo representa um retorno ao lar, ou no mínimo um empenho nessa direção.
Mas, por estranho que pareça, uma vez a jornada estando completa, a jornada que foi até agora uma jornada interior e oculta revela-se envolver, cercar, ou conter aquela que no início era exterior e visível. Como resultado da internalização, foi-se movido para fora da realidade externa. Daqui em diante, a realidade espiritual envolve, cerca, contém a assim chamada realidade material. A realidade espiritual não pode portanto ser encontrada “no onde”. O “onde” está nela. Em outras palavras, a realidade espiritual é que é o “onde” de todas as coisas. Não está localizada em nenhum lugar e não responde à questão “onde”, a categoria ubi que se refere a um lugar no espaço sensível. Seu lugar (abâd) enquanto comparado ao último é Nâ-kojâ (sem-lugar) pois, em relação ao que está no espaço sensorial, seu ubi é um ubique (todo-lugar). Uma vez entendido isso, podemos entender a coisa mais importante que nos permite seguir a topografia das experiências visionárias. Podemos descobrir o caminho (sens em francês), tanto em termos de significado quanto em termos de direção. Além do mais, isso pode nos ajudar a descobrir o que distingue a experiência visionária dos espiritualistas, como Sohrawardi e muitos outros, de certos termos pejorativos em nosso vocabulário moderno como “invenções da mente” ou “fantasias” — a saber, fantasias Utópicas.
Neste ponto, entretanto, devemos fazer um esforço verdadeiro para superar aquilo que pode ser chamado do “reflexo agnóstico” do homem moderno que consentiu no divórcio entre pensar e ser. Um conjunto completo de teorias recentes tem sua origem neste reflexo, e é esperado que nos ajude a escapar do outro reino de realidade que confronta-nos com certas experiências e certa evidência. Tentamos fugir desta realidade, mesmo quando somos secretamente atraídos por ela. Como resultado damos a isto todo tipo de explicações engenhosas mas descartamos a única que, por sua própria existência, sugeriria o que esta realidade é! Para entender este indício teríamos de ter em qualquer caso uma cosmologia que não pode nem mesmo ser comparada com as descobertas mais incríveis da ciência moderna em relação ao nosso universo físico. Pois enquanto estamos exclusivamente preocupados com o universo físico, permanecemos presos no modo de estar “neste lado do Monte Qâf”. A cosmologia tradicional dos teósofos islâmicos é caracterizada por uma estrutura consistindo dos vários universos e mundos intermediados e intermediários “além do Monte Qâf”, ou seja, além dos universos físicos. Isso é inteligível apenas para um modo de existência cujo ato de ser é uma expressão de sua presença nestes mundos. Inversamente, devido a este ato de ser, estes mundos estão presentes nele. [4] O que é então a dimensão deste ato de ser que é, ou será no curso de palingêneses futuras, o lugar destes universos que são exteriores ao nosso espaço natural? E primeiro de tudo, que mundos são estes?
Há o mundo físico e sensível abrangendo tanto nosso mundo terrestre (governado pelas almas humanas) e o universo sideral (governado pelas Almas das Esferas). O mundo sensível é o mundo do fenômeno (molk). Há também o mundo suprassensível da Alma ou Almas Angélicas, o Malakût, no qual as Cidades místicas mencionadas acima estão localizadas, e que começa na “superfície convexa da nona Esfera”. E há o mundo das puras Inteligências arcangélicas. Cada um desses três mundos tem seus órgãos de percepção: os sentidos, a imaginação e o intelecto, correspondendo à tríade: corpo, alma e mente. As tríades governam o desenvolvimento triplo do homem estendendo-se deste mundo para suas ressurreições em outros mundos.
Percebemos imediatamente que não estamos mais confinados ao dilema de pensamento e extensão, ao esquema de uma cosmologia e gnosiologia restrita ao mundo empírico e ao mundo do intelecto abstrato. Entre eles há um mundo que é tanto intermediário quanto intermediado, descrito por nossos autores como o ‘alam al-mithal, o mundo da imagem, o mundus imaginalis: um mundo que é ontologicamente tão real quanto o mundo dos sentidos e do intelecto. Este mundo requer sua própria faculdade de percepção, a saber, poder imaginativo, uma faculdade com uma função cognitiva, um valor noético que é tão real quanto aquele da percepção sensorial ou intuição intelectual. Devemos ser cuidadosos para não confundi-lo com a imaginação identificada pelo assim chamado homem moderno com “fantasia”, e que, de acordo com ele, é nada mais que um derramamento de “imagens”. Isso nos traz ao coração do assunto e do nosso problema de terminologia.
O que é este universo intermediário, ou seja, aquele a que nos referimos anteriormente como o “oitavo clima”? [5] Para todos os nossos pensadores o mundo sensível do espaço consiste de setes climas pertencendo à geografia tradicional. Entretanto, há um outro clima representado por um mundo possuindo extensão e dimensão, figuras e cores; mas essas características não podem ser percebidas pelos sentidos da mesma maneira como se fossem as propriedades de corpos físicos. Não, estas dimensão, figuras e cores são o objeto da percepção imaginativa, ou dos “sentidos psíquico-espirituais”. Este mundo completamente objetivo e real com equivalentes para tudo o que existe no mundo sensível sem ser perceptível pelos sentidos é designado como o oitavo clima. O termo fala por si mesmo, já que significa um clima fora de todos os climas, um lugar fora de todos os lugares, fora do onde (Nâ-Kojâ-Abâd).
O termo técnico em árabe, ‘alam al-mithal, pode também ser traduzido por mundus archetypus, evitando confusão com outra expressão. Pois a mesma palavra (‘alam al-mithal) é usada em árabe para designar o conceito das Ideias platônicas (interpretado por Sohrawardi em termos de angeologia zoroastriana), com a única diferença que quando é usada para denotar as Ideias platônicas é quase sempre acompanhada pela qualificação bem precisa mothol (plural de mithâl), aflâtûnîya nûrânîya, “os arquétipos platônicos de luz”. Sempre que o termo é usado para descrever o mundo do oitavo clima ele se refere, por um lado, às imagens arquetípicas de coisas individuais e singulares; neste caso se refere à região oriental do oitavo clima, a cidade de Jâbalqâ, onde essas imagens subsistem preexistentes e preordenadas em relação ao mundo sensível. Por outro lado, o termo também se refere à região ocidental, a cidade de Jâbarsâ. É o mundo ou mundo intermediário onde os espíritos habitam após sua permanência no mundo terrestre natural, e o mundo no qual as formas de nossos pensamentos e desejos, de nossos pressentimentos e de nosso comportamento e de todos os trabalhos realizados subsiste. [6] O ‘alam al-mithal, o mundus imaginalis, é constituído de todas essas manifestações.
Para usar uma vez mais a linguagem técnica de nossos pensadores, o ‘alam al-mithal é também designado como o mundo de “Imagens em suspenso” (mothol mo’allaqa). Sohrawardi e sua escola entendem por isto um modo de ser correspondendo às realidades deste mundo intermediário, e o que devemos designar como Imaginalia. [7] Este status ontológico bem definido é baseado em experiências espirituais visionárias que Sohrawardi espera ser tão completamente relevantes quanto as observações de Hiparco e Ptolomeu são consideradas relevantes para a astronomia. É claro, as formas e figuras do mundus imaginalis não subsistem da mesma maneira como as realidades empíricas do mundo físico, de outro modo qualquer um teria o direito de percebê-las. Os autores também consideraram que essas formas e figuras não poderiam subsistir no mundo puramente inteligível, pois têm de fato extensão e dimensão, uma materialidade “imaterial” comparada ao mundo sensível, mas têm também uma corporalidade e espacialidade a seu modo. (Neste contexto, desejo relembrar a expressão spissitudo spiritualis cunhada por Henry More, o platônico de Cambridge; que tem seu equivalente exato nos escritos de Sadra Shirazi, o platônico persa). Pela mesma razão, eles consideraram impossível uma mente ser o único substrato para essas formas e figuras; e a possibilidade de serem irreais, puro nada, também foi descartada, pois de outro modo não seríamos capazes de discernir, classificar e avaliá-las. A existência deste mundo intermediário, o mundus imaginalis, portanto, tornou-se uma necessidade metafísica. Imaginação é a função cognitiva desse mundo. Ontologicamente, é mais elevado que o mundo dos sentidos e mais baixo que o mundo puramente inteligível; é mais imaterial que o primeiro e menos imaterial que o último. [8] Essa abordagem da imaginação, que tem sempre sido de primeira importância para nossos teósofos místicos, proveu-lhes com um alicerce para demonstrar a validade dos sonhos e dos relatos visionários descrevendo e relatando “eventos no Céu” tão bem quanto a validade de ritos simbólicos. Isso ofereceu prova da realidade de lugares que ocorrem durante meditação intensa, a validade de visões imaginativas inspiradas, de cosmogonias e teogonias e acima de tudo da veracidade do significa espiritual percebido na informação imaginativa fornecida por revelações proféticas.
Em resumo, este é o mundo dos “corpos sutis”, do qual é indispensável ter alguma noção para entender que existe um elo entre um espírito puro e um corpo material. Seu modo de ser é portanto descrito como “ser em suspenso”. Como aquele da Imagem ou da Forma este modo de ser constitui sua própria “matéria” e é independente do substrato ao qual é imanente como se por acidente. [10] Em outras palavras, Forma ou Imagem não subsiste do modo como a cor negra subsiste no corpo negro ao qual é imanente. A comparação regularmente usada por nossos autores é o modo no qual Imagens “em suspenso” aparecem e subsistem num espelho. A substância material do espelho, seja metal ou mineral, não é a substância da Imagem; a Imagem poderia apenas acidentalmente ser da mesma substância do espelho. A substância é simplesmente o “lugar de sua aparência”. E assim somos levados a uma teoria geral sobre os lugares e formas epifânicos, mazhar (plural mazâhir), que é tão característico da “teosofia oriental” de Sohrawardi.
Imaginação ativa é o espelho por excelência, o lugar epifânico para as Imagens do mundo arquetípico. É por isso que a teoria do mundus imaginalis está intimamente ligada com a teoria da cognição imaginativa e da função imaginativa, que é uma função verdadeiramente central, mediadora, devido à posição mediana e mediadora do mundus imaginalis. A função imaginativa torna possível a todos os universos simbolizarem-se uns com os outros e, a título de experimento, nos permite imaginar que cada realidade substancial assume formas que correspondem a cada universo respectivo (por exemplo, Jâbalqâ e Jâbarsâ no mundo sutil correspondem aos Elementos do mundo físico, enquanto Hûrqalyâ corresponde aos Céus). A função cognitiva da imaginação provê a fundação para um conhecimento analógico rigoroso permitindo-nos evadir do dilema do racionalismo corrente, que nos dá apenas uma escolha entre os dois termos dualísticos banais de “matéria” ou “mente”. Finalmente, a “socialização” da consciência é obrigada a substituir o dilema matéria ou mente por um outro não menos fatal, aquele de “história” ou “mito”.
Aqueles acostumados a permanecer no “oitavo clima”, o reino dos “corpos sutis”, os “corpos espirituais” — limite do Malakût ou mundo da Alma — jamais teriam sido vítimas deste dilema. Eles dizem que o mundo de Hûrqalyâ começa “na superfície convexa da Esfera suprema”. Isso é obviamente um modo simbólico de assinalar que este mundo está no limite onde a relação de interioridade expressa pelo preposição “em”, “dentro de”, é invertida. Corpos espirituais ou entidades não estão em nenhum mundo, nem em seu mundo, da mesma maneira que um corpo material está em seu lugar ou pode estar contido em outro corpo. Pelo contrário, o mundo está neles. Consequentemente, a Teologia atribuída a Aristóteles (aquela versão árabe das três últimas Enéadas de Plotino que Avicenna anotou e que todos os nossos pensadores leram e meditaram por sua vez) explica que cada entidade espiritual está “na esfera inteira de seu Céu”. É claro, cada uma dessas entidades subsistem independentemente das outras. Mesmo assim, todas existem simultaneamente e cada uma está contida na outra. Seria completamente incorreto imaginar este outro mundo como indiferenciado e informe. Há de fato multiformidade, mas as posições relativas no espaço espiritual diferem muito daquelas no espaço abrangido pelos céus estrelados, como a circunstância de existir em um corpo difere do fato de estar “na totalidade do seu Céu”. Por esta razão pode ser dito que “por trás deste mundo há o Céu, a Terra, mar, animais, plantas e homens celestiais; mas cada ser nele é celestial; as entidades espirituais que subsistem são equivalentes aos seres humanos, mas isso não significa que são terrestres”.
A formulação mais exata de tudo isso na tradição teosofista do Ocidente pode talvez ser encontrada em Swedenborg. Dificilmente pode-se evitar ser impressionado pela extensão que as afirmações do grande sueco teosofista e visionário coincidem com aquelas de Sohrawardi, Ibn ‘Arabi ou Sadra Shirazi. Assim, Swedenborg explica:
Embora tudo no céu apareça em um lugar e em um espaço como aparece no mundo, ainda assim os anjos não têm noção ou ideia de lugar e espaço. [De fato], todo progresso no mundo espiritual é efetuado por mudanças dos estados interiores… Consequentemente, há proximidade daqueles que estão em estados similares, e afastamento daqueles cujo estado é dissimilar; e espaços no céu nada mais são que estados externos correspondendo aos internos. Este é o único caso que os céus são distintos cada… Quando… alguém procede de um lugar a outro… ele chega mais cedo quando o deseja, e atrasado quando não o deseja. O caminho em si é alongado ou encurtado conforme a força do desejo. Isto eu frequentemente testemunhei, e sobre isso tenho ponderado. Desses fatos é novamente evidente que distâncias, e consequentemente espaços, existem com os anjos completamente de acordo com estados de seus interiores; e assim sendo, a noção e a ideia de espaço não podem adentrar seus pensamentos; embora espaços existam com eles tal como no mundo. [11]
Esta descrição aplica-se eminentemente bem ao Nâ-Kojâ-Abâd e suas Cidades misteriosas. Em resumo, segue-se que há um lugar espiritual e um lugar corpóreo. A transferência de um a outro é de um modo realizada de acordo com as leis de nosso espaço físico homogêneo. Por comparação com o espaço corpóreo, o espaço espiritual não está em nenhum lugar e para aqueles que alcançam Nâ-Kojâ-Abâd tudo acontece contrário à evidência da consciência ordinária, que permanece orientada dentro de nosso espaço. A partir daqui, o onde, o lugar, é localizado na alma; a substância corpórea reside na substância espiritual; a alma envolve e conduz o corpo. Como resultado, não pode-se dizer onde o lugar espiritual está localizado. Em vez de estar situado, ele situa, está situando. Seu ubi é um ubique. Correspondências topográficas podem, é claro, existir entre o mundo sensível e o mundus imaginalis, um simbolizando o outro. Entretanto, não é possível passar de um a outro sem um rompimento. Isso é assinalado por muitos relatos. Começa-se, mas em algum momento há um colapso das coordenadas geográficas localizadas em nossos mapas. Apenas o “viajante” não está disso consciente nesse momento. Ele o percebe — com desalento ou admiração — apenas após o evento. Se ele o notasse, seria capaz de retomar seus passos à vontade ou indicar o caminho a outros. Entretanto, ele pode apenas descrever onde esteve; não pode mostrar o caminho a ninguém.
2. Imaginação espiritual
Aqui tocamos no ponto decisivo para o que tudo o que precedeu nos preparou, ou seja, o órgão por meio do qual a penetração do mundus imaginalis, a jornada ao “oitavo clima”, é realizada. O que é esse órgão capaz de produzir um movimento que constitui um retorno ab extra ad intra, uma inversão topográfica? Não é os sentidos ou as faculdades do organismo físico, muito menos o intelecto puro. Ao contrário, é o poder intermediário que tem um papel mediador por excelência, ou seja, imaginação ativa. Mas não deixemos nenhum mal-entendido aqui. O que está em jogo é o órgão que torna possível a transmutação dos estados espirituais interiores para os estados exteriores, para eventos visuais simbolizando com aqueles estados interiores. Qualquer progresso no espaço espiritual é realizado por meio desta transmutação, ou melhor, a própria transmutação é que espacializa o espaço; é que causa o espaço que está lá, que causa a “proximidade”, a “distância” e os lugares “remotos”.
O primeiro postulado é que esta Imaginação deve ser uma faculdade puramente espiritual, independente do organismo físico e portanto apta para continuar a existir depois do desaparecimento desse. Sadra Shirazi, dentre outros, insistiu neste ponto em várias ocasiões. [12] Assim como a alma é independente do corpo físico, material, quanto à capacidade intelectiva de receber os inteligíveis, a alma é também independente quanto a sua capacidade imaginativa e sua atividade imaginativa. Além do mais, quando é separada deste mundo pode continuar a valer-se da imaginação ativa. Por meio de sua própria essência e desta faculdade, a alma é portanto capaz de perceber coisas concretas cuja existência, enquanto atualizada em conhecimento (cognição) e em imaginação, constitui eo ipso a forma existencial muito concreta dessas coisas. Em outras palavras, consciência e seu objeto são ontologicamente inseparáveis aqui. Após essa separação, todos os poderes da alma estão reunidos e concentrados na única faculdade da imaginação ativa. Pois nesse momento a percepção imaginativa deixa de ser difundida pelas várias fronteiras dos cinco sentidos do corpo físico, e porque não mais é afligida pelas necessidades do corpo físico, que está exposto às vicissitudes do mundo externo, a percepção imaginativa pode finalmente revelar sua superioridade verdadeira sobre a percepção sensorial.
(Sadra Shirazi escreve) Todas as faculdades da alma então tornam-se como se fossem uma única faculdade, que é o poder de configurar e tipificar (taswir e tamthil). A imaginação da alma torna-se como uma percepção sensível do suprassensível. O insight imaginativo da alma é como seu insight sensível. Assim, seus sentidos de ouvir, de olfatear, saborear e tocar [todos sentidos imaginativos] são como as faculdades sensíveis correspondentes, mas esses sentidos imaginativos são atribuídos ao suprassensível. Enquanto no mundo exterior há cinco faculdades sensíveis, cada uma com seis órgãos específicos no corpo, no mundo interior elas são sintetizadas em um (hiss rnoshtarak).
Tendo equalizado imaginação com o currus subtilis (em grego okhêma, veículo ou corpo sutil) da alma, Sadra Shirazi apresenta nesses textos uma fisiologia inteira do “corpo sutil” e portanto do “corpo de ressureição”. E por esta razão ele acusou mesmo Avicena de ter identificado esses atos da percepção imaginativa póstuma com o que acontece nos sonhos durante a vida no aqui-e-agora. Pois, Sadra Shirazi afirma, mesmo durante o sonho, o poder imaginativo é afetado pelas atividades orgânicas tomando lugar no corpo físico. Muito portanto é requerido para este poder desfrutar de um máximo de perfeição e atividade, liberdade e pureza. De outro modo, o sonho seria simplesmente um despertar no outro mundo. Mas assim não é; entretanto, como sugerido por uma afirmação atribuída às vezes ao profeta e às vezes ao primeiro Imam dos shiitas: “Os seres humanos estão dormindo. Apenas quando morrem, despertam-se”.
Um segundo postulado resulta: imaginação espiritual é de fato um poder cognitivo, um órgão de verdadeiro conhecimento. Percepção imaginativa e consciência imaginativa têm sua função e seu valor noético (cognitivo) dentro de seu próprio mundo, que é — como apontado anteriormente — o ‘alam al-mithal, o mundus imaginalis, o mundo das cidades místicas como Hûrqalyâ, onde o tempo é invertido e onde o espaço, sendo apenas o aspecto exterior de um estado interior, é criado à vontade.
Imaginação é portanto solidamente equilibrada entre o eixo de duas outras funções cognitivas: seu próprio mundo simboliza com os mundos a que as outras duas funções correspondem (cognição sensível e cognição intelectiva). Em outras palavras, há um tipo de controle para proteger a imaginação de dispersão e desperdício imprudente. Então, pode assumir sua função correta e provocar os eventos relatados nas narrativas visionárias de Sohrawardi e outros. Pois a aproximação do oitavo clima deve ser feita por meio da imaginação. Esta pode ser a razão da extraordinária sobriedade da linguagem encontrada nos épicos místicos persas (alcançando de ‘Attar até Jami e até Nur ‘Ali-Shah), onde os mesmos arquétipos são constantemente amplificados e reamplificados por novos símbolos. Sempre que a imaginação se dispersa e é desperdiçada imprudentemente, quando deixa de realizar sua função de perceber e produzir os símbolos que levam à inteligência interior, o mundus imaginalis (que é o reino do Malakut, o mundo da alma) pode ser considerado como tendo desaparecido. No Ocidente, essa decadência pode ser datada do momento quando o averroísmo rejeitou a cosmovisão aviceniana com sua hierarquia angélica intermediária de Animae ou Angeli caelestes. Esses Angeli caelestes (num grau inferior da hierarquia dos Angeli intellectuals) tinham de fato o privilégio do poder imaginativo em sua forma mais pura. Uma vez que o universo dessas almas tinham desaparecido, a própria função imaginativa foi desestruturada e desvalorizada. Assim, pode-se entender a advertência emitida mais tarde por Paracelsus, que advertiu contra qualquer confusão da Imaginatio vera, como os alquimistas a chamavam, com a fantasia, a “pedra angular do louco”. [13]
E esta é a razão própria por que não podemos mais evitar o problema da terminologia. Por que no francês (e no inglês) não temos uma expressão corrente e inteiramente satisfatória para a ideia de ‘alam al-mithal? Propus o latino mundus imaginalis, pois devemos evitar qualquer confusão entre o objeto da percepção imaginativa ou imaginante, por um lado, e o que comumente qualificamos como “imaginário”, por outro. Pois a tendência geral é justapor o real e o imaginário como se o último fosse irreal, Utópico, assim como é costumeiro confundir o símbolo com a alegoria, ou a exegese do significado espiritual com a interpretação alegórica. Alegoria, sendo inofensiva, é um invólucro, ou melhor um travesty de algo que já é conhecido ou no mínimo conhecível de algum outro modo; enquanto que a aparência de uma Imagem que pode ser qualificada como um símbolo é um fenômeno primordial (Urphaenomen). Sua aparência é tanto incondicional quanto irredutível e é algo que não pode se manifestar de qualquer outro modo neste mundo.
Nem as histórias de Sohrawardi, nem aquelas que na tradição shiita falam do alcançar do “país do Imam oculto”, estão no reino do imaginário, do irreal ou alegórico, precisamente porque o oitavo clima ou “país de nenhum-lugar” não é o que comumente chamamos uma Utopia. Como um mundo além do controle empírico de nossas ciências é um mundo suprassensível. É apenas perceptível pela percepção imaginativa e os eventos que lá ocorrem podem ser experienciados apenas pela consciência imaginativa ou imaginadora. Deixe-me novamente enfatizar que o que está considerado não é imaginação como o entendemos em nossa linguagem atual, mas uma visão que é Imaginatio vera. E esta Imaginatio vera deve ser reconhecida como possuindo valor noético ou cognitivo. Se não somos mais capazes de falar sobre imaginação em termos outros que la folle du logis [14] é talvez por termos nos esquecido dos padrões e das regras, a disciplina e a “ordenação axial” que garante a função cognitiva da imaginação, a que me referi várias vezes como imaginatrice.
Deve ser enfatizado que o mundo que esses teósofos orientais exploraram é perfeitamente real. Sua realidade é mais irrefutável e mais coerente que aquela do mundo empírico, onde realidade é percebida pelos sentidos. Ao retornar, os contempladores desse mundo são perfeitamente conscientes de terem estado em “algum outro lugar”; não são simplesmente esquizofrênicos. Esse mundo está escondido atrás do ato da percepção sensorial e tem de ser procurado abaixo de sua aparente certeza objetiva. Por esta razão, definitivamente não podemos qualificá-lo como sendo imaginário no sentido corrente da palavra, ou seja, como irreal, ou não-existente. Assim como a palavra latina origo nos proveu em francês com os derivativos originaire (nativo de), original, originel (primário), a palavra imago pode nos dar o termo imaginal além do derivativo regular imaginário. Teríamos então o mundo imaginal como um intermediário entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Sempre que encontrarmos o termo árabe jism mithali para denotar o “corpo sutil” que alcança o oitavo clima, ou o “corpo de ressureição”, estaremos então hábeis para traduzi-lo literalmente por corpo imaginal, mas, é claro, não por corpo imaginário. Talvez tenhamos menos dificuldade situando figuras que não são nem “mitológicas” nem “históricas”, e talvez sua tradução nos proverá com a palavra de passe para a estrada que leva ao “continente perdido”.
E para encontrar coragem para percorrer essa estrada, teríamos que nos perguntar o que nossa realidade é, a realidade para nós, de modo que, quando a abandonarmos, atingiremos mais que um mundo imaginário, ou uma Utopia. Ainda mais, teríamos que nos perguntar: o que é a realidade desses pensadores orientais tradicionais que os habilita alcançar o oitavo clima, Nâ-Kojâ-Abâd. Como eles são aptos a deixar o mundo sensível sem deixar a realidade; ou, melhor, por que apenas ao fazer isso eles atingem a verdadeira realidade? Isso pressupõe uma escala de ser com muito mais graus que o nosso próprio. Não façamos nenhum erro e digamos simplesmente que nossos precursores no Ocidente conceberam imaginação muito racionalisticamente e muito intelectualisticamente. A menos que tenhamos acesso a uma cosmologia estruturada de modo similar àquela dos filósofos orientais tradicionais, com uma pluralidade de universos ordenados ascensionalmente, nossa imaginação permanecerá fora de foco, e suas conjunções recorrentes com nossa vontade de poder será uma fonte de horror sem fim. Estaríamos confinando-nos a buscar uma nova disciplina da Imaginação. Seria, entretanto, difícil encontrar tal disciplina, enquanto continuamos a ver nisso não mais que um meio de obter distância com relação ao que chamamos de real e um modo de agir sobre a realidade. Mas, essa realidade que sentimos é arbitrariamente limitada tão logo comparamo-la à realidade descrita por nossos teósofos tradicionais, e essa limitação degrada a realidade em si. Uma outra expressão que é sempre oferecida como uma escusa para limitar a realidade é reverie (devaneio), tal como reverie literário, por exemplo, ou, para ser mais atual, fantasia social.
Entretanto, não podemos evitar nos questionar se não foi necessário o mundus imaginalis ter sido perdido e ter dado lugar ao imaginário; se não foi necessário secularizar o imaginal na forma do imaginário para que o fantástico, o horrível, monstruoso, macabro, miserável, e absurdo pudessem triunfar. Em contraste, a arte e imaginações da cultura islâmica em sua forma tradicional são caracterizadas pelo hierático, pela seriedade, gravidade, estilização e significado. Nem nossas Utopias, nem nossa ficção científica, nem mesmo o sinistro “ponto ômega” aconteceram abandonando esse mundo, em alcançando o Nâ-Kojâ-Abâd. Aqueles que conheceram o oitavo clima, por outro lado, não fabricaram Utopias, nem é o derradeiro pensamento shiita uma fantasia social ou política. É uma escatologia pois é uma expectativa e como tal implica, aqui e agora, uma presença real em um outro mundo, um testemunho desse outro mundo.
Sem dúvida, comentários incontáveis poderiam ser feitos sobre este tópico tanto por metafísicos tradicionalistas e não-tradicionalistas quanto por fisiologistas. Entretanto, a modo de conclusão provisória, gostaria de limitar-me a levantar três pequenas questões:
1) Não somos mais participantes de uma cultura tradicional. Vivemos em uma civilização científica, que diz ter mestria mesmo sobre imagens. É bem lugar comum referir-se à civilização atual como a “civilização da imagem” (a saber, nossas revistas, cinematografia e televisão). Mas é de se questionar se — como todos os lugares comuns — isso também não abriga uma má compreensão radical, uma completa má interpretação. Pois, em vez de a imagem ser elevada ao nível do mundo a que pertence, em vez de ser investida com uma função simbólica que levaria ao significado interior, a imagem tende a ser reduzida simplesmente ao nível da percepção sensível, sendo portanto definitivamente degradada. Poderia ser dito então que quanto maior o sucesso dessa redução, mais as pessoas perdem seu senso do imaginal e mais elas são condenadas a produzir nada mais que ficção?
2) Seria possível todo o imaginário, a cenografia dessas narrativas orientais, sem o fato inicial, objetivo, absolutamente primário e irredutível das imagens arquetípicas cuja origem é irracional e cuja irrupção em nosso mundo é imprevisível mas cujo postulado não pode ser rejeitado?
3) Não é precisamente o postulado da objetividade do mundo imaginal, que nos é sugerida, ou imposta, por certas figuras e certos emblemas simbólicos (hermetistas, cabalistas ou as mandalas), que tem efeito mágico sobre as imagens mentais de modo que adquirem realidade objetiva?
A fim de sugerir uma possível resposta à questão considerando a realidade objetiva das Figuras sobrenaturais e encontros com elas, quero me referir a um texto notável, no qual Villiers de l’Isle-Adam fala da face do Mensageiro impenetrável com olhos de argila; sua face “apenas pode ser percebida pela mente. Criaturas vivas apenas experienciam a influência inerente na entidade arcangélica”. “Os Anjos”, ele escreve, “existem substancialmente apenas na sublimidade livre dos Céus absolutos, onde a realidade é uma com o ideal… Eles externalizam-se apenas no êxtase que causam e que lhes é inerente”. [15]
Essas últimas palavras — o êxtase que lhes é inerente — parecem-me ser de lucidez profética, pois têm a virtude de abalar até a rocha da dúvida, de paralisar o “reflexo agnóstico” no sentido de que rompem o isolamento mútuo da consciência com seu objeto, do pensamento com o ser; aqui, fenomenologia torna-se ontologia. Sem dúvidas, esse é o postulado implícito no ensino de nossos autores sobre o imaginal. Não há critério externo, para a manifestação do Anjo, outro que a própria manifestação. O Anjo é ele próprio “ekstasis”, o movimento a partir de nós mesmos, que representa uma mudança em nosso estado de ser. Por essa razão, essas palavras também sugerem o que o segredo do ser sobrenatural do “Imam oculto” é na consciência shiita: o Imam é o ekstasis dessa consciência. Ninguém que não esteja no mesmo estado de espírito pode vê-lo.
Isso é ao que Sohrawardi aludiu em sua narrativa do Arcanjo carmesim, o que ele quis dizer pela sentença que citamos no início: “Se tu és Khezr, também poderás passar além do Monte Qâf sem dificuldade”.
Traduzido do francês por Ruth Horine.
[Fonte: https://recortelirico.com.br/]
[1] Cf. a tradução francesa do autor deste pequeno tratado (escrito em persa por Sohrawardi) em En Islam Iranien aspects spirituels et philosophiques, vol. II, livro II: “Sohrawardi et les Platoniciens de Perse”, Paris (Gallimard), 1971. Para um estudo mais completo dos tópicos lidados aqui, cf. ibid, particularmente vol. IV, livro VII sobre o 12º Imam ou o “Imam cache”.
[2] Cf. Henry Corbin, Histoire de let philosophic islamique, vol. I, Paris (Gallimard), 1964, pp. 222 ss., 317 ss.
[3] Portanto a representação da Esfera das Esferas é apenas uma indicação esquemática em astronomia peripatética ou ptolemaica; ela continua a ser válida, mesmo embora esta astronomia tenha sido abandonada. Isso significa que não importa para quão alto você possa ser capaz de ir com foguetes ou Sputniks, você nunca terá progredido um centímetro para Nâ-Kojâ-Abâd, pois o “limite” não terá sido cruzado.
[4] Sobre esta noção de presença, cf. em particular a introdução do autor a Molla Sadra Shirazi, Le Livre des Penetrations metaphysiques (Kitab al-Masha’ir), edição e tradução francesas (Biblioteque Iranienne. vol. 10), Paris (Adrien-Maisonneuve), 1964, index s. v.
[5] Pelo que se segue, cf. Henry Corbin, Terre celeste et corps de resurrection: de l’lran mazdeen a l’Iran shi’ite, Paris (Buchet-Chastel-Correa), 1961, pp. 130, 133, 142 ss., 199 ss.
[6] Ibid., pp 202 ss., 251 ss.
[7] Ibid., pp 142 ss., 199 ss.
[8] Ibid., p. 201.
[11] E. Swedenborg, Céus e suas maravilhas, também Céu e o estado intermediário, de Coisas ouvidas e vistas, trad. Swedenborg Society, British and Freign, Londres, 1875, SS 191–195. Swedenborg repetidamente insistiu nesta doutrina de espaço e tempo, por exemplo, em seu pequeno livro De telluribus in mundo nostro solari. Se esta doutrina não é levada em consideração, experiências visionárias podem ser rebatidas com argumentos que são tão fáceis quanto inválidos, pois confundem visões espirituais do mundo espiritual com fantasias produzidas pela ficção científica. Um abismo separa as duas noções.
[12] Cf. o livro do autor En islam iranien (cf. nota 1), vol. IV, livro V: “L’Ecole d’Ispahan”. Capítulo II é inteiramente dedicado aos escritos de Molla Sadra Shirazi. Cf. também o trabalho citado na nota 4.
[13] Cf. do autor, Creative Imagination in the Sufism of Ibn’Arabi, Princeton e Londres, 1969, p. 179. Sobre a teoria dos Angeli caelestes cf., do autor, Avicenna and the Visionary Recital, Bollingen Series LXVI, New York (Pantheon Books), 1960.
[14] Este é um termo francês corrente para imaginação, que traduzido literalmente significa “a louca da casa”. — Trad.
[15] Villiers de l’Isle-Adam, L’Annonciateur (epílogo).
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